O Haiti não é aqui
Geografia

O Haiti não é aqui


Durante o mestrado, pesquisei as obras de vários intelectuais brasileiros que, das décadas de 1920 a 1940, tiveram importância como precursores das ciências sociais brasileiras e/ou influência na política nacional, entre os quais estavam Azevedo Amaral e Oliveira Vianna. Faziam parte do que se pode chamar "pensadores autoritários brasileiros", grupo que pensava o Brasil com o objetivo de identificar as causas do nosso "atraso" e de propor soluções que passariam pela instauração de um Estado forte, como foi a ditadura Vargas. Nesse sentido, uma ideia comum a esses autores citados, bem como à maioria dos intelectuais da época, era a de que grande parte do "atraso" brasileiro em relação à Europa se devia à suposta inferioridade de negros, índios e mestiços (Diniz Filho, 2002). E a força dessa visão nos meios intelectuais do país extrapolava o universo do pensamento autoritário - como se vê na obra de Sérgio Buarque de Hollanda - e alcançava até os livros didáticos de geografia, conforme comentei aqui.


Mas uma coisa interessante é que, na época do mestrado, eu não dei muita importância ao fato de que, apesar dessa visão fortemente racista, nenhum desses autores defendia a necessidade de instituir no Brasil políticas de segregação racial, que barrassem o acesso de negros, pardos e indígenas à universidade, por exemplo. A "solução" apresentada era sempre "branquear" a população por meio da entrada de mais imigrantes europeus. Ali Kamel (2006) assegura que a inexistência de políticas segregacionistas na história brasileira se deve à miscigenação intensa da população, que tornava tais políticas impraticáveis. Não havia como obrigar à separação de brancos e negros em um ônibus, por exemplo, num país onde quase metade da população é parda!

A conclusão de Kamel faz todo sentido, sem dúvida, mas seria mesmo impossível haver políticas de segregação racial em países de forte miscigenação? O Haiti nos dá a resposta:
O preconceito com os mulatos era cada vez mais comum em São Domingos. Em quase todo o século 18, mais de 70% dos casamentos eram inter-raciais, geralmente de colonizadores franceses que migravam sozinhos ao Caribe e acabavam casando com ex-escravas ou suas filhas nascidas livres. Por causa desses matrimônios, 47% dos cidadãos livres de 1790 eram descendentes tanto de europeus quanto de negros, os chamados livres de cor ou mulatos. Muitos deles eram filhos legítimos, que cresciam num ambiente tão próspero quanto o das crianças brancas mais ricas. Quando adultos, tornavam-se mais ricos e bem-educados que muitos brancos que não haviam estudado fora. Entre os filhos não reconhecidos, acontecia com frequência de, com a morte do pai, herdarem terras e escravos. [...] Juntos, eles possuíam de 20% a um terço dos 500 mil escravos da colônia e eram donos de cerca de 2 mil fazendas de café.
A partir da década de 1770, quando essa parcela da população cresceu a ponto de intimidar os brancos, os livres de cor começaram a perder direitos políticos. O censo passou a classificar as pessoas segundo o grau de descendência africana; novas leis provinciais proibiram os livres de cor de eleger representantes, ocupar cargos públicos ou trabalhar como médicos ou farmacêuticos. A lei chegava até os cuidados pessoais: eles não podiam vestir-se como os brancos nem mesmo ter penteados à moda europeia. No imponente teatro de Le Cap, mulatos e negros livres eram obrigados a se sentar nos piores lugares. Para aqueles que haviam estudado fora e estavam acostumados a um tratamento mais digno, essa segregação era inconcebível (Narloch; Teixeira, 2011, p. 173-174). 
Esse quadro acabou levando ao surgimento de um movimento político contra o preconceito racial entre esses livres de cor, do qual Julien Raimond foi um dos principais ativistas. Ele era mulato, fazendeiro rico, dono de muitos escravos, estudou na França quando jovem e residia nesse país durante a revolução. Mas ele e outros militantes dessa causa não propunham a abolição da escravatura. Bem ao contrário, "[...] os mulatos não só defendiam a continuidade da escravidão como propagavam a teoria de que o maior controle sobre as senzalas só seria possível com a igualdade racial dos cidadãos livres" (Idem, 174). 

Ainda assim, a luta de Raimond contra a discriminação que ele sofria não obteve sucesso pela via da negociação política. Esbarrava na ideia, defendida pela elite branca, de que não haveria justificativa para manter os negros escravos se os livres de cor fossem tratados com igualdade. Em 1791, explodiu a revolta dos escravos na colônia, que começou uma sequência interminável de guerras internas e com potências estrangeiras, guerras que destruíram a economia e deram origem ao país mais pobre da América Latina. 

Em suma, a miscigenação, por si só, não impede a instauração de leis de apartheid. Se o Brasil foi por outro caminho, mesmo com a forte influência das teorias racistas nos meios intelectuais do final do século XIX e primeira metade do XX, a razão só pode ter sido outra. Talvez a pista certa esteja mesmo em Giberto Freyre, conforme vou comentar em outro post. 

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KAMEL, A. Não somos racistas: uma reação aos que querem nos transformar numa nação bicolor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

NARLOCH, L.; TEIXEIRA, D. Guia politicamente incorreto da América Latina. São Paulo: Leya, 2011.




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