Geografia
Gilberto Freyre, Tomasi di Lampedusa e o poder de contar a história
O sociólogo Gilberto Freyre dedicou seu trabalho de pesquisa mais importante, o livro Casa-Grande & senzala, aos seus quatro avós. O romance O leopardo, de Giuseppe Tomasi, príncipe de Lampedusa, narra a história do Príncipe de Salina, que era avô do autor. Ao comentar esse romance, o historiador Boris Fausto faz uma comparação muito interessante entre os dois autores, ao salientar que ambos pertenceram a famílias que haviam perdido o poder político, mas que conservavam o poder de contar a história.
O livro de Freyre é frequentemente acusado de haver escondido as atrocidades cometidas no Brasil sob o regime escravista. A acusação é falsa porque o livro narra, sim, as crueldades cometidas. Mas é certo que, no esforço de evidenciar a estabilidade da sociedade colonial brasileira, que ele qualificou como "o tipo de civilização mais estável na América hispânica", Freyre pode ter acabado por construir uma visão por demais idealizada dessa sociedade, tanto do lado da casa-grande quanto do lado da senzala. Por seu turno, Tomasi di Lampedusa faz uma nítida defesa do feudalismo em seu romance, especialmente da nobreza, mas também do clero. Num diálogo sobre a pobreza da Sicília, onde morava, o Príncipe diz que era errado atribuir culpa à herança do feudalismo, já que esse sistema, supostamente, "existiu em toda parte". A sua explicação era que o baixo desenvolvimento siciliano se devia ao clima quente da ilha, ideia retomada pelo narrador, em outras partes do livro, com descrições literárias sobre o modo como o sol parecia dar a todas as coisas da ilha uma aparência de miragem, de desvanecimento.
Talento literário à parte - e Lampedusa o tinha muito -, o que vemos aí é uma forma simples e corriqueira de usar o determinismo ambiental para explicar as diferenças de desenvolvimento regional. Nesse sentido, Giberto Freyre é muito melhor. Primeiro, porque ele não deixa de nuançar sua caracterização da sociedade colonial brasileira ao relatar as atrocidades cometidas, conforme já comentado. Segundo, porque a preocupação com a cientificidade o conduzia a embasar suas afirmações em muitas referências bibliográficas.
Talvez por isso a interpretação do Brasil elaborada por Gilberto Freyre continue sendo revisitada até os dias atuais, apesar de haver muita coisa datada em sua obra. De fato, o próprio esforço de construir grandes "leituras do Brasil" já ficou anacrônico faz tempo - só Milton Santos não viu isso. O conceito de caráter nacional, com o qual Freyre e os intelectuais de seu tempo trabalhavam, foi descartado há décadas. Ele errou, nos anos 1920, quando fez elogios à famigerada Ku Klux Klan pelo seu suposto papel de conservar as tradições do Sul dos EUA. Errou também ao não dar importância à necessidade de um projeto político democrático para o Brasil. E pode ainda ter idealizado a sociedade agrária e híbrida de seus antepassados. Mas, ainda assim, pela preocupação em corroborar suas afirmações com evidências históricas, parece que esse autor conseguiu captar dois elementos importantes da colonização brasileira.
O primeiro elemento é que não se conformou aqui uma questão racial entendida como barreiras intransponíveis, erigidas pelo preconceito, à miscigenação e à ascensão social, tal como se viu, por exemplo, nos EUA. O segundo é que essa impotência do racismo brasileiro para separar as raças e bloquear a ascensão de negros e pardos parece ser mesmo uma tendência cultural herdada dos portugueses, a qual costumava ser chamada de "plasticidade". Realmente, é isso o que sugere a comparação entre a história do Brasil e a do Haiti, conforme eu comentei no post
O Haiti não é aqui.
Em suma, tanto Freyre quanto Lampedusa foram homens de seu próprio tempo, e buscaram contar a história de pontos de vista carregados dos valores e modos de pensar dos grupos sociais a que pertenceram. Mas o compromisso de Freyre em ser um cientista social levou-o muito além. Sua contribuição ao entendimento da cultura brasileira é inegável!
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