Geografia
Estado moderno diz sim quando devia dizer não e diz não quando devia dizer sim
Dando continuidade ao post Quando o Estado moderno aprendeu a dizer sim com bons motivos, vou citar aqui alguns exemplos de como os governos da atualidade selecionam os estudos científicos que se mostram úteis à legitimação de ações que, em benefício de políticos, burocratas e de grupos de pressão organizados, atendem aos piores desejos dos eleitores.
Como visto naquele texto, da segunda metade do século XVIII até as primeiras décadas do século XX, a ciência econômica cumpriu um papel importante ao mostrar que, quando se liberam os indivíduos para perseguirem a satisfação de seus desejos inserindo-se na economia de mercado, o resultado é benéfico para todos. Mas, desde a crise de 1929, a expansão das funções econômicas e sociais do Estado fortaleceu a ideia de que a satisfação dos desejos do indivíduo não é uma tarefa a ser realizada por meio de esforços individuais, mas uma obrigação do Estado.
Então os eleitores querem que as taxas de juros permaneçam perto de zero indefinidamente e condições para financiar a compra da casa própria por períodos de muitas décadas, a fim de poder consumir muito e não poupar nada? Basta chamar algum economista keynesiano para dizer que é a demanda que gera a oferta, que o Estado deve trabalhar permanentemente para elevar o nível de demanda agregada e de emprego, e pronto: eleitores satisfeitos e governantes reeleitos. E se o excesso de liquidez gerado por essa política de juros impulsiona os bancos a fazer apostas de altíssimo risco e acumular créditos podres em financiamentos imobiliários, até levar a uma grande quebradeira, não tem problema, não. Keynesianos como Gregory Mankiw estão aí para repetir que, diante da recessão gerada por uma crise, a saída é injetar ainda mais liquidez no sistema que quebrou por excesso de liquidez.
Os gregos querem receber salários tão próximos quanto possível dos salários alemães mesmo produzindo pouco, e cada vez menos? Tudo bem, é só pegar dinheiro emprestado com a União Europeia, usar esses recursos para elevar o salário mínimo e instituir décimo quarto salário para funcionários públicos. Quando chegar a hora de pagar, os gregos avisam que não têm dinheiro, exigem perdão das dívidas e logo aparece um Robert Skydelski, o maior biógrafo de Keynes, para espalhar o medo com o discurso de que o nazismo não teria ascendido ao poder se não fosse a crise de 1929. É uma simplificação histórica grosseira, até porque a situação de renda, saúde e de alimentação dos gregos atuais é infinitamente melhor do que a dos alemães de quase um século atrás, esmagados pela dívida imposta pelo Tratado de Versalhes. Mas, vá lá, é preciso ter coração, deixar de lado a "ética do dinheiro" e rolar as dívidas dos gregos. Vai que os neonazistas gregos ganham a eleição, não é mesmo?
Ou ainda: agricultores familiares europeus e japoneses não conseguem atingir uma renda anual compatível com o da média da população porque produzem mercadorias baratas, como são os alimentos, em pequena escala? Tudo bem, há um grande número de sociólogos, antropólogos e geógrafos para sair por aí dizendo, de forma gratuita, que o agronegócio é "do mal" e a agricultura camponesa é "do bem", conforme já discuti em vários textos neste blog. E, se a política agrícola europeia faz água, porque gera aumentos de produção que rebaixam mais ainda o preço da comida e, assim, exigem gastos crescentes com subsídios, não tem problema, não. Os especialistas começam a falar em "multifuncionalidade do espaço rural", conceito que justifica dar dinheiro para agricultores familiares que abandonam a agricultura mas continuam a residir no campo, com a única condição de que eles conservem a beleza de suas propriedades. Afinal, o campo tem funções ecológicas e estéticas tão importantes que produzir comida acaba sendo o de menos.
Na outra ponta das cadeias agroalimentares ocorre o mesmo. Como o desenvolvimento do capitalismo acaba com os problemas de desnutrição, mediante o crescimento da renda per capita e da produtividade na agricultura e na indústria de alimentos, as políticas de transferência de renda instituídas após a crise de 1929 perderam a sua principal justificativa humanitária. Mas e daí? Os nutricionistas e sociólogos rurais deixam de lado os critérios clínicos de avaliação do estado nutricional da população e o substituem por um conceito enganoso, o de "segurança alimentar". Assim, são feitas pesquisas nas quais os indivíduos dão respostas subjetivas sobre sua alimentação por meio de um questionários com perguntas feitas propositalmente para superestimar as situações de "fome" - definidas em termos puramente subjetivos, sem nenhum embasamento na medicina. O resultado são indicadores que sugerem existir milhões de pessoas que estariam com a saúde em risco por carência de alimento, quando na verdade a maior parte dessas pessoas está com excesso de peso e nenhuma delas tem dificuldade para comprar comida! Foi assim nos EUA e, bem mais recentemente, no Brasil, quando as pesquisas baseadas em critérios clínicos provaram que a desnutrição é quase inexistente. E note-se que eu nem estou a dizer que as políticas de transferência devem ser abolidas ou aplicadas só com populações que realmente passam fome: apenas chamo a atenção para o modo como o Estado se serve da ciência que lhe convém para justificar suas políticas com apelos tão emocionais quanto falseadores da realidade.
Agora, quando se trata de intervir nos padrões de consumo alimentar para combater o excesso de peso e a obesidade, faz-se o caminho inverso: os técnicos e burocratas desprezam a subjetividade das pessoas e o direito de escolha individual e esfregam na cara de todo mundo pesquisas médicas que demonstram os males à saúde ocasionados pelo consumo excessivo de calorias, sal, açúcar, etc. Se isso fosse feito para informar a opinião pública sobre as consequências de suas escolhas, por meio de campanhas educativas, tudo bem, eu daria o maior apoio. Mas a ONU, essa "estatal mundial", juntamente com governos como o brasileiro, e também associações médicas, usam estudos científicos para defender medidas autoritárias, como a "regulamentação" - isto é, censura - de publicidade de alimentos calóricos, bem como a taxação pesada desses alimentos, no intuito de forçar as pessoas a comerem o que elas - ao menos por enquanto - não querem comer.
Temos então um Estado que dá dinheiro para pessoas pobres e gordas a título de combater a fome ao mesmo tempo em que tenta proibir as pessoas de renda mais alta de escolher livremente o que desejam comer. Um Estado que, hipocritamente, usa ou rejeita critérios científicos conforme suas necessidades de propaganda. E um Estado que, em vez de estimular as pessoas a buscar a satisfação de seus desejos no campo econômico numa perspectiva de longo prazo, por meio de trabalho e poupança, usa os instrumentos de regulação macroeconômica e mecanismos politizados de transferência de renda para estimular o consumo irresponsável em prejuízo dos investimentos produtivos. Os governos do PT fizeram isso, com consequências em termos de baixo crescimento e de alta inflação que só começaram a ser sentidas mais intensamente depois que a boa fase da economia mundial passou.
Em suma, esses são apenas alguns exemplos de como o Estado moderno usa o conhecimento científico (sempre de forma seletiva e instrumental) para dizer sim quando deveria dizer não e para dizer não quando deveria dizer sim. Os maiores beneficiados com isso são os políticos e burocratas do Estado e da ONU. Eles recebem votos facilmente, ganham prestígio político, justificam seus empregos e salários (o que é particularmente verdade no caso da ONU) e empurram as verdadeiras soluções para as gerações futuras. Quando a casa cair, é só culpar os especuladores financeiros e a "ética o dinheiro". O povo agradece!
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