Até Fani entreviu o que Ruy Moreira não enxergou
Geografia

Até Fani entreviu o que Ruy Moreira não enxergou


Em um texto que fazia o balanço de dez anos do advento da geografia crítica ou radical, Ruy Moreira (um dos muitos geógrafos marxistas que hoje renegam esse rótulo, mas sem abandonar o anticapitalismo velho de guerra) faz uma avaliação muito interessante sobre os limites dessa renovação científica:
[...] o conceito de espaço não evolui acompanhado da criação de uma linguagem de representação espacial renovada e o olhar cartográfico fica fora da renovação geográfica. E isso é o que fica evidente agora na ida ao campo.
O que é paradoxal, porquanto um rico e forte momento de reflexão sobre o conceito de espaço, que busca justamente precisá-lo de um modo teórico-metodológico claro e operacional [...] está em curso na renovação, clamando pela sua conversão em linguagem concreta de representação cartográfica. Uma conversão que não houve (Moreira, 2000, p. 43).

Mas a verdade é que não existe absolutamente nada de paradoxal nisso. Pelo contrário, os pressupostos metodológicos do marxismo, que foi a pedra angular na edificação da geocrítica, destroem de antemão qualquer possibilidade de renovar a linguagem cartográfica para transformá-la em instrumento útil de pesquisa sobre o espaço tal como este é conceituado pela geocrítica!

A razão é muito simples: a cartografia só pode representar espacialmente objetos e processos empiricamente observáveis e quantificáveis, pois somente assim é possível localizá-los. Acontece, porém, que o materialismo histórico dialético supõe que as contradições sociais que explicariam a lógica da acumulação de capital  e os mecanismos de reprodução da sociedade capitalista não se revelam de imediato na observação empírica. É por isso que Marx e seus seguidores sempre repetiram e enfatizaram a ideia de que é absolutamente necessário fazer uma distinção entre a aparência e a essência dos fenômenos. Mas, se o capitalismo é explicado por contradições dialéticas que não se revelam de imediato ao observador, que cabimento tem pensar que seria possível mapear tais contradições?

Por incrível que pareça, Ana Fani A. Carlos, apesar de toda a sua miopia teórico-metodológica, foi quem chegou perto de explicitar tal impossibilidade. Essa autora elogia os objetivos da pesquisa DATALUTA, a qual elaborou um banco de dados georeferenciado sobre acampamentos de "sem-terra" e invasões de propriedades, mas ressalva que "a distribuição espacial das ocupações em si não esclarece as lutas, uma vez que não ilumina sua negatividade, mas apenas as localiza espacialmente" (Carlos, 2007). 

É raríssimo eu concordar com Fani, mas não há dúvida de que ela tem razão nesse ponto. Se a tal "luta por terra" é manifestação de contradições dialéticas, não faz sentido supor que a localização espacial das invasões tenha qualquer utilidade para a construção de teorias críticas da sociedade capitalista! Ruy Moreira não enxerga essa impossibilidade óbvia, mas se dá ares de argúcia intelectual quando indaga as razões de a geocrítica haver reformulado o conceito de espaço sem renovar a cartografia!

E isso, é claro, supondo-se que a tal "negatividade" que explicaria as lutas políticas exista mesmo. Quando se abandona esse pressuposto marxista, fica claro que o erro de Moreira não está só na incapacidade de perceber a contradição lógica de querer transformar a cartografia em instrumento de crítica radical ao capitalismo, mas também no fato de ele reclamar da inexistência de um método que permita desenhar os chifres dos cavalos...

- - - - - - - - - - -

Postagem relacionada

  • Fani e França Filho provam que a geografia ainda vive em 1980!
- - - - - - - - - - -

CARLOS, A. F. A. A ?geografia crítica? e a crítica da geografia. In: COLOQUIO INTERNACIONAL DE GEOCRÍTICA, 9., 2007. Disponível em: <http://www.ub.es/geocrit/9porto/anafani.htm> Acesso em: 18 ago. 2007. 

MOREIRA, R. Assim se passaram dez anos: a renovação da geografia brasileira no período 1978-1988. Geographia, Niterói (RJ), Ano II, n. 3, p. 25-50, 2000.




- Não Pretendo Fundar Uma Nova Corrente De Pensamento Geográfico
Na última disciplina que ministrei junto ao Programa de Desenvolvimento Educacional - PDE, um dos professores que participaram fez uma pergunta muitíssimo interessante. Ele comentou que, como eu estava fazendo uma série de refutações a autores...

- Fani E França Filho Provam Que A Geografia Ainda Vive Em 1980
Já escrevi um texto para rebater as críticas de Ana Fani A. Carlos ao meu ensaio Certa má herança marxista (Diniz Filho, 2002), como se pode ler aqui. Mostro no trabalho que, além de cometer erros grosseiros de interpretação do que escrevi,...

- Vesentini Entregou O Jogo Sem Querer
José W. Vesentini afirma que, ao contrário do que geralmente se pensa, a origem da geocrítica brasileira não se deu nas pesquisas universitárias, mas sim no ensino médio e fundamental. Ele procura justificar tal avaliação por meio de um testemunho...

- Rogério Haesbaert Não Admite, Mas é Um Geógrafo Crítico
Uma vez que a geografia crítica se tornou hegemônica, ninguém mais quer se assumir como um geógrafo crítico. Isso soa paradoxal, mas faz todo sentido. Se as teses fundamentais da geocrítica são aceitas por todos como verdades evidentes por si mesmas,...

- O Ambientalismo Dos Geógrafos é Demagogia Esquerdista
Um dos mantras que não param de ser repetidos pelos intelectuais e professores brasileiros é o de que o capitalismo é, em si mesmo, antiecológico. Na geografia, vemos isso nos escritos de Ana Fani Alessandri Carlos, Marcelo Lopes de Souza, José W....



Geografia








.