Não pretendo fundar uma nova corrente de pensamento geográfico
Geografia

Não pretendo fundar uma nova corrente de pensamento geográfico


Na última disciplina que ministrei junto ao Programa de Desenvolvimento Educacional - PDE, um dos professores que participaram fez uma pergunta muitíssimo interessante. Ele comentou que, como eu estava fazendo uma série de refutações a autores e teses pertencentes à geografia crítica ou radical (já que a proposta da disciplina era justamente questionar os conteúdos da geografia escolar informados por essa corrente), qual seria então a nova escola de pensamento geográfico que eu teria a propor em substituição a esta? Minha resposta foi que eu não tinha o objetivo de substituir uma vertente de pensamento por outra e que nem achava possível fazer isso na geografia.

De fato, para criar uma nova escola ou tendência de pensamento geográfico, seria preciso redefinir o objeto de estudo da geografia a partir de um corpo teórico-metodológico coerente, o que implicaria uma das seguintes opções: definir tal objeto de forma a restringir o temário geográfico aos fenômenos passíveis de serem tratados por meio desse conjunto de métodos e teorias selecionado; ou definir o objeto de pequisa a partir de uma epistemologia totalizante o suficiente para abranger todo o temário geográfico atual.

Se olharmos bem, foi isso o que aconteceu nas duas grandes "revoluções" da geografia. A corrente teorética ou quantitativista restringiu o objeto de estudo da geografia às "leis da organização espacial", estabelecendo-se, assim, uma tendência a estudar apenas os processos naturais e sociais importantes para a explicação dos padrões de formas da natureza, os padrões de distribuição espacial dos elementos naturais e sociais e, por fim, os processos que conectam pontos diferentes do espaço. Hoje, a aceitação de uma proposta epistemológica como essa ficaria sempre limitada pelo fato de que ela deixaria de fora inúmeros temas de estudo geográfico que não poderiam ser tratados adequadamente com base na metodologia científica e suas ferramentas matemáticas e estatísticas. É bem esse o caso, por exemplo, dos temas de geografia cultural e social que, nas últimas décadas, foram definidos e trabalhados com base em abordagens mais ou menos próximas do humanismo, tais como a fenomenologia e o estudo do espaço vivido.
 
Já a geografia crítica marxista fez o segundo caminho descrito, isto é, de definir o objeto de estudo da disciplina por meio de conceitos totalizantes, tais como os de espaço e de produção do espaço, de modo que praticamente todos os temas geográficos poderiam ser teorizados a partir de métodos e teorias marxistas. Isso foi possível porque o marxismo era, desde a origem, uma epistemologia baseada no conceito de totalidade dialética e, portanto, procurava articular processos econômicos, sociais, políticos e culturais em teorias abrangentes sobre a sociedade capitalista.
 
Ainda assim, vimos que o marxismo reforçou a tendência de afastamento entre os ramos físico e humano da geografia, dada a impossibilidade de tratar dos fenômenos da natureza com base no método marxista sem apelar para o conceito equivocado de "dialética da natureza". E, no âmbito da geografia humana, a produção de teorias gerais só foi possível na medida em que se apelou para diversas formas de determinismo econômico e de fetichismo espacial. Por fim, a vertente, digamos, pós-moderna da geocrítica repudiou alguns elementos do marxismo, como sua tradicional teoria da revolução, a ênfase nas relações econômicas e a perspectiva racionalista, mas manteve os mesmos raciocínios de causa e efeito e as mesmas teorias simplificadoras e maniqueístas das lutas políticas para continuar explicando o espaço numa perspectiva totalizante (Diniz Filho, 2013).

Onde eu quero chegar

Mas, se não existe uma epistemologia que possa servir de base para a substituição da hegemonia da geocrítica, ao menos sem mutilar de alguma forma o temário geográfico, qual seria então a saída? A saída é ter em mente que, numa pesquisa científica, as reflexões epistemológicas devem estar sempre e sempre atreladas ao objeto de pesquisa em foco. Foi exatamente isso o que eu procurei explicar no último parágrafo da obra didática Fundamentos epistemológicos da geografia, conforme segue:
Enfim, a filosofia não resolve os problemas epistemológicos da geografia ou de qualquer outra ciência. As respostas só podem ser encontradas pelos próprios pesquisadores e professores, em reflexões que transitam o tempo todo da problemática de pesquisa para a reflexão epistemológica e de volta para a problemática. Os caminhos que podem ser encontrados nesse trânsito são muitos. Cabe a nós descobri-los (Diniz Filho, 2009, p. 228).
Um bom exemplo disso é a minha tese de doutorado, que tratava da dinâmica econômica regional do Brasil no período 1970-2000. O método que eu elaborei para estudar esse tema, inspirado nos estudos de competitividade sistêmica, é bastante apropriado para esse tópico específico da geografia econômica, mas não necessariamente serve para outros temas de pesquisa nesse ramo da geografia e de maneira alguma pode ter utilidade na geografia social, política ou cultural. Os métodos adequados a aplicar nesses ramos da geografia precisam ser definidos pelos autores que se debruçam sobre os temas e objetos de estudo que lhes são próprios.

Portanto, o sentido de desconstruir a geografia crítica, trabalho a que tenho me dedicado nos últimos tempos, não é substituir essa tendência do pensamento geográfico por um novo pacote de respostas prontas. O objetivo é, pelo contrário, tirar do caminho os obstáculos epistemológicos representados pelas causalidades simplistas e pelos consensos ideológicos apriorísticos legados pela geocrítica para que respostas novas, mais objetivas e mais eficazes possam brotar no campo assim aberto.

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DINIZ FILHO, L. L. Fundamentos epistemológicos da geografia. Curitiba: IBPEX, 2009 (Coleção Metodologia do Ensino de História e Geografia, 6).

DINIZ FILHO, L. L. Por uma crítica da geografia crítica. Ponta Grossa (PR): Editora da UEPG, 2013.




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A natureza social do discurso geográfico - Alexandrina Luz Conceição. Terra Livre São Paulo/SP Ano 28, V.2, n.39 p.19-35 Jul-Dez 2012 Baixar o artigo completo em PDF:  http://www.agb.org.br/publicacoes/index.php/terralivre/article/download/451/426 Resumo:...

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