Geografia
Sobre racismo e determinismo ambiental no pensamento de esquerda
No post O determinismo ambiental está vivo e a esquerda apoia, eu mostro como a revista História Viva fez uso das teorias do historiador Ian Morris para sustentar a tese de que a ascensão do chamado "Ocidente" nada tem a ver com as instituições econômicas e políticas liberais, nem com qualquer fator cultural ou político, pois seria apenas fruto dos caprichos da geografia. Demonstrei ainda que o determinismo ambiental esteve presente em muitas elaborações teóricas marxistas, como em O Capital e nas teorias de Caio Prado Júnior sobre a distinção entre colônias de povoamento e colônias de exploração. Recentemente, mandaram um comentário a esse texto que diz o seguinte:
Não estou de acordo: Determinismo geográfico é o que praticam organismos financeiros internacionais hoje para promover políticas neoliberais, como demonstro na minha dissertação de Mestrado (sob orientação do Prof. Vesentini) através do Banco Interamericano de Desenvolvimento, apoiado pelo próprio Jared Diamond (Ian Morris fazendo parte deste meio discursivo). No que se refere ao século XIX, é preciso não trocar alhos por bugalhos: o determinismo geográfico podia coincidir, à diferença de hoje, com ideias progressistas, abolicionistas e republicanistas, como nos diz a história literária e cultural do Brasil.
A primeira observação a fazer é que, embora eu tenha demonstrado com citações literais que as teorias de Morris foram usadas para mover uma crítica contra as teses liberais de Francis Fukuyama - e, por extensão, contra todos os autores que afirmam o papel central das instituições econômicas e políticas dos países capitalistas democráticos na explicação de seus elevados níveis de bem-estar social - o comentador tentou negar minha afirmação dizendo que autores como Morris subsidiam políticas "neoliberais" praticadas por organismos financeiros internacionais. Trata-se, pois, de uma crítica completamente inócua. Afinal, mesmo que se concorde que organismos como esses embasam certas ações em ideias deterministas, isso não muda o fato, provado com as citações, de que a revista História Viva se apoiou igualmente no determinismo de Morris para sustentar uma visão crítica das instituições econômicas e políticas liberais.
A segunda observação a fazer é que há outros exemplos de uso de discursos deterministas por parte da esquerda que eu não cheguei a citar naquele post, e que dizem respeito não à esquerda intelectual, mas à esquerda política. A transposição do São Francisco foi anunciada com estardalhaço marqueteiro, fazendo eco ao discurso - que os geocríticos sempre acusaram de determinista - que identifica a seca como causa maior dos problemas sociais do Nordeste. Logo no início do primeiro governo Lula, a revista IstoÉ - que tem baixa credibilidade, pois depende de propaganda paga por estatais do governo federal para sobreviver, já que tem poucos assinantes e anunciantes - publicou uma matéria intitulada "A Revolução das Cisternas", que tratava de um programa de apoio para a construção de cisternas em pequenas propriedades rurais da região da seca no Nordeste.
Quanto a dizer que o determinismo podia coincidir com ideias progressistas, abolicionistas, etc., estou de acordo. Tratei do assunto em minha dissertação de mestrado, ao mostrar que o determinismo ambiental, embora estivesse sempre combinado ao determinismo biológico, podia servir para amenizar as teses racistas (Diniz Filho, 2002).
É o que se via, por exemplo, em um conservador como Oliveira Vianna. Mas não é o que se via em Sérgio Buarque de Hollanda em seu famoso Raízes do Brasil. Embora tenha sido um dos fundadores do PT (partido socialista e de esquerda), Hollanda criticava explicitamente a tese de Vianna de que o meio natural seria um fator explicativo do progresso dos povos mais importante do que a raça. Para Hollanda, essa tese seria apenas uma desculpa para minimizar o nosso suposto problema racial...
Finalmente, qualificar uma ideia como progressista ou reacionária depende das referências teóricas e ideológicas de quem a avalia. Conforme eu demonstrei no meu doutorado, no livro Por uma crítica da geografia crítica (Diniz Filho, 2013) e em vários textos deste blog, as políticas que os intelectuais "críticos" qualificam como neoliberais trouxeram resultados completamente opostos aos que eles previram. Um autor como Vesentini, por exemplo, à luz do que eu escrevi nas obras citadas, jamais poderia ser qualificado como progressista ou qualquer coisa que o valha. As ideias dele, assim como as dos demais expoentes da geocrítica, geraram todo tipo de abominação política, pedagógica e científica no âmbito da pesquisa e do ensino de geografia!
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DINIZ FILHO, L. L. Por uma crítica da geografia crítica. Ponta Grossa (PR): Editora da UEPG, 2013.
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