Já cansei de ler que o determinismo ambiental é uma ideologia criada pelas "classes dominantes" europeias para justificar o colonialismo e que foi aproveitada pelos nazistas para legitimar o expansionismo alemão. Não que isso seja falso, mas o problema é que esse discurso é tão unilateral que acaba distorcendo a verdade, pois a tese de que as condições ambientais determinam em larga medida os processos históricos era muito bem aceita pelos teóricos ligados à esquerda política durante o século XIX e primeira metade do século XX.
Realmente, o próprio Karl Marx chegou a dizer que o capitalismo surgiu na Europa por causa das condições edáficas do continente, conforme a seguinte passagem d'O Capital:
Uma natureza pródiga demais ?retém o homem pela mão como uma criança sob tutela?; ela o impede de se desenvolver ao não fazer com que seu desenvolvimento seja uma necessidade de natureza. A pátria do capital não se encontra sob o clima dos trópicos, em meio a uma vegetação luxuriante, mas na zona temperada. Não é a diversidade absoluta do solo, mas sobretudo a diversidade de suas qualidades químicas, de sua composição geológica, de sua configuração física, e a variedade de seus produtos naturais que formam a base natural da divisão social do trabalho e que excitam o homem, em razão das condições multiformes ao meio em que se encontra situado, a multiplicar suas necessidades, suas faculdades, seus meios e modos de trabalho (Marx, citado por Martins, 1994).
E ainda há outros exemplos disso, como o teórico marxista Gueorgui Plekhanov, que influenciou o também marxista Caio Prado Júnior. De fato, tanto Plekhanov quanto Prado Júnior afirmavam que a economia deriva das condições naturais. Esse é um dos pressupostos utilizados por Prado Júnior para estabelecer a diferença entre colônias de povoamento e colônias de exploração, sendo as primeiras próprias das regiões de clima temperado e as segundas localizadas nas regiões de clima tropical (Caldeira, 2009, p. 131).
E a esquerda usa o determinismo ainda hoje
E se alguém pensar que os autores de esquerda atuais rejeitam o determinismo, basta ler o número 90 da revista História Viva para comprovar que não é assim. Essa edição traz um artigo do historiador Ian Morris, o qual defende a tese de que a hegemonia da Europa e dos Estados Unidos nos últimos quinhentos anos não se deve a nenhuma característica racial, cultural, política ou econômica dos povos dessas áreas, mas tão-somente às vantagens oferecidas pelo seu meio geográfico em relação ao contexto histórico desse período.
Segundo esse autor, a geografia "[...] molda a história, mas não de maneira óbvia: determina por que sociedades em algumas partes do mundo se desenvolvem tão mais rápido do que outras; mas, ao mesmo tempo, o grau em que as sociedades se desenvolveram determina o peso da geografia". Como exemplo, ele cita a posição da Grã-Bretanha no Oceano Atlântico, a qual manteve os povos dessas ilhas atrasados em relação às civilizações que floresceram com base na agricultura há 4 mil anos atrás, mas representou uma enorme vantagem do século XVII em diante, por ampliar o raio de ação da marinha britânica (Morris, 2011, p. 56).
Independentemente de qualquer avaliação sobre essa tese, não há dúvida de que se trata de determinismo ambiental puro sangue, não é mesmo? Agora vejamos como Bruno Fiuza (2011), editor da revista, usa essa tese para atacar os intelectuais identificados com a direita política:
A queda do Muro de Berlim, em 1989, deu margem à proliferação dos mais absurdos discursos ideológicos travestidos de ciência social, como o "fim da história" de Francis Fukuyama e o "choque de civilizações" de Samuel P. Huntington. De acordo com esses "pensadores", o colapso dos regimes socialistas do Leste Europeu marcaria o triunfo final da civilização ocidental. [?]
[Mas] como afirma Morris, o Ocidente não tem nada de especial. [?] O que realmente fez a diferença foi uma situação geográfica privilegiada diante de determinado contexto histórico.
E uma má notícia para os arautos da superioridade do Ocidente: segundo Morris, em menos de 50 anos a China vai voltar a ocupar o lugar que sempre foi seu até o século XVIII ? o de maior potência do planeta.
Então, ficamos assim: quando alguma tese determinista levar a conclusões desagradáveis para os adversários do Ocidente, será imediatamente rebaixada à condição de ideologia produzida pelas classes dominantes e Estados imperialistas; mas, quando o determinismo servir de argumento para combater o Ocidente, ganhará automaticamente o status de lei científica mais do que comprovada.
EM TEMPO ? Por que os inimigos do Ocidente deveriam ficar esfuziantes com a ascensão da China se isso também não se deve à nenhuma superioridade oriental, mas tão-somente a mais um capricho da natureza?
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CALDEIRA, J. História do Brasil com empreendedores. 1. ed. São Paulo: Mameluco, 2009, p. 131.
FIUZA, B. O Ocidente está nu. História Viva, São Paulo, ano VIII, n. 90, mar. 2011.
MORRIS, I. O triunfo do Ocidente. História Viva, São Paulo, ano VIII, n. 90, mar. 2011.
MARX, K. Das Kapital, p. 1006, citado por MARTINS, L. L. A natureza da paisagem em Friedrich Ratzel. In: V Congresso Brasileiro de Geógrafos, 1994. Curitiba. Resumos. Curitiba: AGB, 1994.
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