Visão de natureza de Fritjof Capra não justifica propostas de sustentabilidade ambiental
Geografia

Visão de natureza de Fritjof Capra não justifica propostas de sustentabilidade ambiental


Uma das muitas explicações banais que são repetidas o tempo todo por geógrafos e cientistas sociais é a de que a chamada "crise ambiental" tem origem numa visão dicotômica da relação sociedade/natureza, visão essa cujas origens estariam ligadas à moral judaico-cristã e à racionalidade cartesiana. Essa visão estabeleceria que a natureza é apenas um recurso a ser utilizado pelo homem, o qual, no esforço de "dominá-la", geraria desperdício de recursos naturais e uma série de impactos ambientais insustentáveis no médio e longo prazos. A alternativa, portanto, começaria por adotar uma perspectiva holística da relação sociedade/natureza, que seria própria das "filosofias orientais" e de certas descobertas da ciência moderna, como as da física quântica, que supostamente confirmariam essa perspectiva. A partir daí, seria possível constituir sistemas econômicos e técnico-científicos sustentáveis, já que baseados na concepção de que a natureza é, ao invés de um recurso para o homem, um sistema complexo  do qual o homem faz parte.


Talvez o maior inspirador desse tipo de explicação banalizada seja Fritjof Capra, autor de O tao da física e de O ponto de mutação, entre outros livros de sucesso - em textos de epistemologia da geografia, ele é muito citado. O problema é que as pessoas não percebem que essa concepção romântica da natureza como um "todo" que inclui o homem e cuja unidade seria acessível ao conhecimento - a qual não é exclusividade do pensamento oriental, pois também está no cerne da filosofia idealista alemã, que influenciou Humboldt e Ritter - contradiz as tentativas de empregá-la para justificar formas sustentáveis de produção.

Um pequeno exemplo disso está num comentário ao post Agrotóxicos não fazem mal à saúde, mas nutricionista se contradiz para propagandear orgânicos. O autor do comentário, que é produtor agroecológico, defendeu esse método de produção (ao qual eu não me oponho), afirmando que, conforme diz Capra, em O ponto de mutação, "o homem não teceu a trama da vida ele é apenas um fio". 

Ora, conforme eu já expliquei há tempos, numa palestra, esse tipo de argumento traz uma contradição lógica que o invalida e inverte sua conclusão. É absolutamente verdade que o homem constitui apenas um fio na trama da vida, mas é por isso mesmo que os ecossistemas não foram feitos para que o homem seja bem alimentado, saudável e tenha vida longa. Para uma espécie qualquer fazer parte de um ecossistema, basta que os indivíduos que a compõem tenham uma taxa de sobrevivência razoável e que o mesmo suceda a seus descendentes. Se os indivíduos dessa espécie são bem ou mal alimentados, se têm verminoses ou não, se são doentes ou não, se vivem até os 20 ou até os 100 anos, não importa. Os ecossistemas são o que são, e ponto. Daí, nada ser mais lógico do que a necessidade de alterar profundamente os ecossistemas para podermos comer mais e melhor, viver mais tempo e de maneira mais saudável.

Não há espécie melhor para demonstrar isso do que o homem. As antigas sociedades de caçadores-coletores estavam em "harmonia" ou em "equilíbrio" com o meio ambiente por conta de sua baixíssima densidade demográfica, do estilo de vida nômade e do uso de tecnologias rudimentares. Na verdade, estudos feitos com os índios da bacia do rio Juruá, na Amazônia brasileira, indicam que o estilo de vida desses povos até contribuiu para a elevadíssima biodiversidade hoje existente na região. É que, ao cortar árvores de grande porte para construir suas aldeias, esses índios ampliavam a incidência de luz solar na floresta, abrindo espaço para o desenvolvimento de muitos espécimes de outras plantas que não teriam como sobreviver na sombra. Ao caçar animais, e migrar de área quando as presas de maior porte começavam a escassear, esses índios também auxiliavam o desenvolvimento de espécies que competiam com suas presas. Noutras palavras, povos caçadores-coletores como esse colaboram para o aumento da biodiversidade porque matam animais e plantas em pequena escala, impedindo que haja um predomínio muito forte de poucas espécies no ecossistema.

Retomando, cabe perguntar: qual era a expectativa de vida dos povos caçadores-coletores no alvorecer da humanidade? Meros 26 anos de idade, na melhor das hipóteses (ver aqui). Isso é um terço da longevidade encontrada nos países mais desenvolvidos do mundo moderno e metade daquela vigente nos países mais miseráveis, geralmente assolados por guerras. Pesquisas feitas em esqueletos de povos pré-colombianos mostraram que a grande maioria deles passava fome e/ou tinha carência de nutrientes básicos, especialmente ferro - uma exceção eram certas tribos do atual litoral brasileiro, que combinavam a proteína do peixe com uma variedade razoável de alimentos de origem vegetal. E isso sem falar que, entre caçadores-coletores de todos os continentes, imperava a violência entre tribos rivais e também entre indivíduos de uma mesma tribo ou família (ver abaixo). Em suma, a baixa densidade demográfica dos caçadores-coletores era reflexo, ainda que não exclusivamente, dessa baixíssima expectativa de vida.

É impressionante a falta de lógica elementar de certos argumentos usados pelos críticos mais radicais da modernidade. Eles dizem "a natureza não foi feita para o homem, logo, não podemos encará-la como um recurso a ser usado". Um caso óbvio de conclusão que contradiz a premissa. O correto é afirmar "a natureza não foi feita para o homem, logo, somos obrigados a usá-la como recurso se quisermos comer bem e ter vida longa e saudável". 

Se as intervenções que as sociedades modernas estão fazendo nos ecossistemas são sustentáveis ou não, é algo a ser analisado e debatido. Mas pensar que qualquer forma de produção que interfira o mínimo possível nos ecossistemas pode ser generalizada sem sacrificar a qualidade de vida conquistada por essas sociedades implica supor que a natureza foi feita para atender às necessidades humanas, o que é falso. O debate sobre sustentabilidade não pode se basear em concepções românticas de natureza, tal como a defendida por Fritjof Capra.

Postagens relacionadas
  • Pesquisadores pacifistas adoram distorcer as teorias de que discordam
  • Steven Pinker e o debate Rousseau versus Hobbes




- Natureza E Tragédia: O Quê Fizemos Com Aterra?
A natureza dá tudo ao homem. A vida humana, depende somente da natureza. O conhecimento, a tecnologia e os alimentos, tudo isso depende da natureza. Mas, o homem e a sociedade, se afastaram da natureza, como se fosse somente para deixar de ser humano,...

- Pesquisadores Pacifistas Adoram Distorcer As Teorias De Que Discordam
Acabei de ler um artigo sobre as causas da violência que me deixou pasmo pelo despudor com que certos cientistas e jornalistas distorcem as teorias de que discordam. O artigo completo está aqui, e vou comentar apenas as passagens abaixo: Em 2011, o...

- Steven Pinker E O Debate Rousseau Versus Hobbes
Li estes dias um excelente artigo de Steven Pinker sobre os condicionantes da agressividade - autor citado na seção de comentários do post Brasil prova que desigualdade não gera violência. Após um preâmbulo sobre o sentido pejorativo que os termos...

- Clássico: Redescoberta Da Natureza- Milton Santos
                          Redescoberta da Natureza - Milton Santos Segundo Milton Santos, a histórica relação entre o homem e a natureza teve diferentes proposições. Num primeiro momento...

- Por Que Você Precisa Estudar Geografia?
Observando o espaço em que você vive, verá que foi produzido pelo homem, através da modificação da natureza, plantando e colhendo, criando animais, erguendo construções. Dessa forma, o planeta deixou de ser apenas uma paisagem natural, para se...



Geografia








.