Geografia
Slavoj Zizek e as versões do dogmatismo anticapitalista
Conforme explicado em outro post (aqui), Slavoj ?i?ek é um teórico socialista cuja obra resume os truques retóricos usados pela maioria dos autores radicais da atualidade, a saber: primeiro, propor revoluções que apontam para utopias de conteúdos indefinidos; segundo, usar malabarismos dialéticos que, de modo mais ou menos explícito, justificam eticamente qualquer ação violenta com teor anticapitalista ou antiliberal; terceiro, culpar o capitalismo por todos os males do mundo sem explicar direito as relações de causa e efeito que justificariam tais acusações. Agora, é o momento de situar a forma como ?i?ek aplica esses truques no contexto da crise da teoria social crítica - tradição de pensamento que engloba o marxismo e todas as demais formulações teóricas assumidamente interessadas em contestar a ordem capitalista em bases radicais.
Nesse sentido, cabe dizer que os três truques foram e são utilizados por marxistas saudosos do modelo de economia planificada, como Eric J. Hobsbawn e José Paulo Netto, como também por pós-modernistas como Boaventura de Souza Santos e o próprio ?i?ek O primeiro grupo admite que o socialismo real fracassou, situa a causa do fracasso num "excesso de burocracia" ou numa falta de "autocrítica" das experiências revolucionárias, e defende a necessidade de um modelo de planificação corrigido, mas sem explicar no que consistiriam exatamente essas correções. Nesse sentido, os velhos marxistas permanecem fiéis ao espírito cientificista da obra de Marx, e lançam mão dos truques retóricos mencionados como se tal procedimento não entrasse em contradição com suas pretensões de objetividade e cientificidade. Já o segundo grupo elabora uma crítica à razão como ponto de partida para a crítica tanto do capitalismo como das experiências socialistas fracassadas, mas acaba produzindo apenas afirmações categóricas sem sustentação e racionalizações ad hoc das pautas reivindicatórias de todos os grupos políticos que se dizem anticapitalistas ou antiglobalização, como MST, Via Campesina, e assim por diante.
Noutros termos, vê-se aí que a teoria social crítica é sempre e essencialmente dogmática, pois, seja pela suposição de cientificidade, seja por formulações antirracionalistas, o resultado é sempre o mesmo: utopias indefinidas, malabarismos dialéticos e ataques ao capitalismo que só se sustentam pelo falseamento da realidade. É disso que trato ao longo do meu último livro, ao mostrar que, seja na geografia escolar, seja na academia ou ainda nas atividades de planejamento, os discursos críticos nascem invariavelmente de suposições apriorísticas, que precedem e determinam de antemão as opções teórico-metodológicas, os conteúdos a serem ensinados e as avaliações sobre as políticas públicas (Diniz Filho, 2013).
Slavoj ?i?ek funciona como um exemplo perfeito dessas manobras retóricas tal como elas são empregadas pelos autores do segundo grupo, que podem ser denominados - de forma bastante geral, tendo em vista que têm em comum a crítica da razão - como pós-modernos. É o que se lê em uma ótima resenha de sua obra, escrita por John Gray, conforme as passagens citadas abaixo:
Assim, o Hegel que surge nos escritos de ?i?ek tem pouca semelhança com o filósofo idealista que figura nas histórias convencionais do pensamento. Hegel é comumente associado à noção de que a história tem uma lógica intrínseca, na qual as ideias são concretizadas na prática e depois deixadas para trás, em um processo dialético no qual são superadas por outras ideias que representam o seu oposto. Inspirando-se no filósofo francês contemporâneo Alain Badiou, ?i?ek radicaliza a noção da dialética, propondo que ela signifique a rejeição do princípio lógico da não contradição, segundo o qual uma proposição não pode ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo. [...]
Ao contrário de Marx, ele não pretende fundamentar suas teorias em uma leitura da história baseada em fatos. "A conjuntura histórica atual não nos obriga a abandonar a noção de proletariado, ou da posição proletária ? ao contrário, ela nos obriga a radicalizá-la até um nível existencial, para além até mesmo da imaginação de Marx", escreve ele. "Precisamos de uma noção mais radical do sujeito proletário [ou seja, o ser humano que pensa e age], um sujeito reduzido ao ponto evanescente do 'Penso, logo existo' cartesiano, esvaziado do seu conteúdo substancial." Nas mãos de ?i?ek, as ideias marxistas ? as quais, na visão materialista de Marx, se destinavam a designar fatos sociais objetivos ? se tornam expressões subjetivas de compromisso revolucionário. Saber se essas ideias correspondem a alguma coisa que existe no mundo é irrelevante.
Há um problema neste ponto: por que alguém haveria de adotar as ideias de ?i?ek, e não quaisquer outras? A resposta não pode ser "porque as ideias do filósofo são verdadeiras", em qualquer sentido tradicional da palavra. "A verdade de que estamos tratando aqui não é a verdade 'objetiva'", escreve ?i?ek, "mas sim a verdade autorreferente a partir da posição subjetiva de alguém; como tal, é uma verdade engajada, medida não pela sua precisão factual, mas sim pela forma como ela afeta a posição subjetiva da enunciação."
Se isso significar alguma coisa, quer dizer que a verdade é determinada pela forma como se encaixa nos projetos com que o orador está comprometido ? no caso de ?i?ek, o projeto da revolução. Mas isso só nos leva a colocar o problema em outro nível: por que alguém deveria adotar o projeto de ?i?ek? A pergunta não pode ter uma resposta simples, uma vez que está longe de ser claro no que consiste o seu projeto revolucionário (Gray, 2011 - itálico no original).
Precisa dizer mais? Tudo perfeitamente de acordo com os discursos dos geógrafos críticos que avaliei em meu último livro. E não surpreende que seja assim. Afinal, a geocrítica nada mais é do que uma incorporação da teoria social crítica ao estudo do temário geográfico.
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DINIZ FILHO, L. L. Por uma crítica da geografia crítica. Ponta Grossa: Editora da UEPG, 2013.
GRAY, J. As visões violentas de Zizek
. Piauí, n. 71, ago. 2012.
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