Geografia
Reflexões sobre a Suécia à luz das relações entre ética e capitalismo
O economista Albert Hirschman (1986) elaborou um estudo muito interessante sobre as diferentes concepções teóricas e ideológicas dos efeitos sociológicos do funcionamento do mercado. Uma ideia fundamental sobre esses efeitos é aquela que Hirschman denominou "tese do suave comércio", defendida por autores como Adam Smith e Montesquieu. Segundo essa tese, uma vez que a economia de mercado é individualista e contratualista, seu bom funcionamento depende da confiabilidade dos agentes econômicos. Mas o próprio mercado oferece incentivos para que os indivíduos sejam fidedignos, pois as oportunidades de negócios tendem a ficar cada vez mais restringidas para os desonestos, dando-se o inverso com os indivíduos e empresas que realmente cumprem os contratos. Nesse sentido, uma das grandes virtudes da economia de mercado é que ela produz os próprios valores morais que lhe servem de sustentação.
Mas Hirschman assinala que essa tese vem sendo contestada, desde o século XVIII, pela visão oposta: a "tese da autodestruição" do capitalismo. Esse tipo de visão, que reúne tanto conservadores românticos quanto socialistas revolucionários, afirma que o desenvolvimento do mercado tende a solapar os valores morais que sustentam as relações contratuais. O capitalismo seria sustentado por valores herdados de sociedades tradicionais, mas o incentivo à competição e à busca de satisfazer interesses particulares terminaria por deslegitimar a ética do respeito aos contratos.
E o que isso tudo tem a ver com a Suécia? Em artigo recente, João Luiz Mauad resumiu as conclusões de uma pesquisa publicada por Nima Sanandaji, em 2011, sobre esse país. O estudo mostra que a Suécia era um país pobre antes da década de 1870, mas a partir do "surgimento do capitalismo", experimentou um salto excepcional de crescimento, o qual perdurou até o início da primeira guerra mundial. De 1930 em diante, o país, até então bastante liberal, passou a ser conduzido sob a égide da social-democracia. Mas foi somente na década de 1960 que houve realmente uma forte virada para a esquerda, manifesta na elevação da carga tributária e em sistemas de regulação econômica prejudiciais para os negócios. O resultado disso foi uma desaceleração do crescimento, com efeitos sociais negativos:
Em 1970, a Suécia ainda era o quarto país mais rico do mundo, medido em termos de renda per capita. Porém, conforme a carga tributária ia subindo a renda caía e, em 2008, o país já estava na 12ª posição. Atualmente, a renda per capita da Suécia é de $36.600, bem menor que a dos $45,500 dos EUA e muito menor que os $56,900 dos sueco-americanos (Mauad, 2012).
E a situação atual seria pior se já não tivesse havido uma reação contra o intervencionismo no início dos anos 1990, quando foram realizadas reformas liberalizantes até mais radicais que aquelas implementadas por Reagan e Thatcher, com resultados positivos sobre o crescimento da economia sueca. Nesse sentido, a principal conclusão do estudo citado por Mauad é que a Suécia é um país rico apesar do seu Estado do bem-estar, não por causa dele. Mas qual seria então o segredo do desenvolvimento sueco?
O argumento chave de Sanandaji é o da primazia dos valores. Honestidade, frugalidade e parcimônia ? virtudes necessárias para o desenvolvimento econômico e social, tão bem esmiuçadas por Adam Smith no clássico "A Riqueza das Nações" ? já faziam parte da cultura sueca muito antes da introdução do "welfare state", a partir da década de 1930 do século passado. Segundo o autor, este "capital moral", arduamente constituído ao longo dos séculos, é o que tem sustentado o sucesso da Suécia (e de outros países nórdicos), apesar do estado de bem-estar.
O interessante nessa conclusão é que o elogio do liberalismo se faz com o argumento de que os valores morais que dinamizam a economia capitalista não são produzidos pelos incentivos econômicos do mercado, mas sim herdados de um longo período anterior. Nesse sentido, o texto de Sanandaji pode ser usado não só como uma defesa do liberalismo econômico, mas também, e em especial, do liberalismo conservador. Afinal, se o elemento definidor do conservadorismo é a defesa da moralidade como elemento de coesão social, pode-se concluir que essa corrente de pensamento é a mais favorável para estimular uma cultura propícia ao desenvolvimento de longo prazo. Por outro lado, poderíamos indagar: a inflexão social-democrata ocorrida na Suécia não seria evidência de que é difícil perceber o mercado como causa do crescimento econômico e dos benefícios sociais que este traz, de sorte que, como a legitimação do mercado se dá por valores morais que lhe são externos, a ideia de distribuir riqueza por mecanismos extra-econômicos está sempre e necessariamente presente? Ou será que haveria uma tendência da sociedade resistir ao liberalismo devido a efeitos sociais ou psicológicos negativos do funcionamento do mercado, os quais não são captados por indicadores econômicos?
Outra questão importante diz respeito ao desenvolvimento desigual. O estudo em questão afirma que os povos mais bem-sucedidos são aqueles cuja cultura está impregnada de certos valores morais; logo, é forçoso concluir que a pobreza dos países subdesenvolvidos se deve à falta desses mesmos valores nas culturas de seus respectivos povos. É nesse ponto que as conclusões desse estudo sobre a Suécia se chocam com as conclusões de Hernando de Soto (2001), para quem o subdesenvolvimento não se deve a diferenças culturais, mas institucionais.
Em suma, temos aqui algumas reflexões que demonstram a natureza bastante flexível do capitalismo, posto que as inúmeras combinações possíveis de relações entre Estado e mercado criam múltiplas formas de capitalismo, com desempenhos econômicos e sociais bastante distintos. É por isso que os autores radicais erraram ao pensar o capitalismo a partir da tese da autodestruição: como já ressaltou Hirschman (que estava bem longe de ser um liberal), a história demonstrou que as previsões mais catastrofistas derivadas dessa tese simplesmente não se realizaram. E ele escreveu isso quando o Muro de Berlim ainda estava de pé! Pior para os geógrafos, que, mesmo depois de décadas dessa derrocada, continuam a pensar o mundo com base numa oposição entre capitalismo e socialismo.
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HIRSCHMAN, A. Poder e fraqueza da sociedade de mercado: interpretações rivais, de Montesquieu a nossos dias. In: __________. A economia como ciência moral e política. São Paulo: Brasiliense, 1986.
MAUAD, J. L. Suécia: sucesso apesar do estado de bem-estar. Ordem Livre, 09 mar. 2012. Disponível em: <http://www.imil.org.br/artigos/suecia-sucesso-apesar-estado-de-bemestar/> Acesso em: 24 abr. 2012.
SOTO, H. O mistério do capital. Rio de Janeiro: Record, 2001.
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