Por Thais Rivitti
“Ocupar, resistir e produzir”, eis uma famosa palavra de ordem do MST, Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Os movimentos sociais fazem ocupações de terra e os jornais anunciam as ações como invasões. A celeuma é antiga. Entre ocupar e invadir há uma diferença sutil, porém decisiva. Ocupa-se algo que estava desocupado, não servia a nada nem a ninguém. Invade-se um lugar que estava em uso, expulsando à força seus antigos ocupantes. O emprego de um ou outro termo revela, sobretudo, a posição política daquele que fala.
O livro “Por que ocupamos? – Uma introdução à luta dos sem-teto” , escrito por Guilherme Boulos, um militante do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, e publicado em 2012 pela Scortecci Editora, busca explicar por que o MTST utiliza-se da ocupação de terra (improdutiva, que serve apenas à especulação imobiliária) para lutar pelo direito à moradia. É possível lutar por moradia de outra forma? Bem, por que não? Marchas, protestos, abaixo-assinados que circulam pela internet, artigos para jornais, diálogo com as secretarias e o ministério de habitação. Todas essas estratégias são utilizadas pelo MTST. Por que, então, ocupar? Por que mobilizar inúmeras famílias, construir barracos de lona em terrenos hostis, expor-se a despejo nada amigáveis?
O livro de Boulos nos apresenta um motivo tão forte quanto óbvio: o déficit habitacional. Pode parecer tolo, mas, se não houvesse demanda, não haveria luta. O fato é que os números impressionam. Pode-se dizer que um terço da população brasileira vive sem condições mínimas de moradia digna (luz elétrica, esgoto, água encanada e coleta de lixo). Entram nessa conta também as famílias que vivem em casas superpovoadas, ou seja, casas que abrigam mais de 3 pessoas por cômodo, normalmente pequenos. São números oficiais, ou seja, são os números da Fundação João Pinheiro, usados pelo Governo Federal para pensar em uma – até hoje bastante ineficiente – política habitacional.
Se a primeira resposta à pergunta “por que ocupamos?” é porque não há moradia digna para todos, embora esse seja um direito garantido pela constituição, há duas outras coisas que apenas a experiência de compartilhar o mesmo espaço, nem que seja por um breve período de tempo, pode trazer. Uma delas é que as ocupações questionam a lógica geral da distribuição de terras que, segundo o argumento reproduzido por Boulos, foi iniciada com as capitanias hereditárias, se quisermos buscar sua origem histórica. De uma forma ou de outra, as ocupações colocam a incômoda pergunta sobre o que é justo, no que diz respeito a um dos pilares mais sagrados do nosso Direito, a propriedade privada. Ocupar é uma ação que, por si só, declara sua discordância em relação ao senso comum, que diz que qualquer um pode fazer o que bem quiser dentro da sua propriedade – até não fazer nada. Mas nada mesmo, nem pagar os impostos devidos (a imensa maioria dos terrenos ocupados pelos movimentos de luta pela moradia têm dívidas imensas com o governo).
As ocupações são um estorvo, conseguem incomodar. As ocupações, mesmo no caso do MTST, que têm como prática atuar na periferia da grande São Paulo, em cidades como Osasco, Embu, Taboão da Serra, Itapecerica, ABC Paulista e Guarulhos, são ações fortes o suficiente para provocar e, portanto, cavar um espaço de negociação com uma população que nunca é ouvida.
A reforma urbana, bandeira levantada pelo movimento dos sem teto, é uma espécie de análogo à reforma agrária, propõe uma revisão sobre as bases em que a ocupação urbana é feita e se propõe a pensar em como tornar as cidades um lugar mais acolhedor para a imensa maioria de pobres. Além de habitações, também se pensa nos espaços públicos, nos equipamentos como hospitais, escolas, centros de lazer, no sistema de transporte, no esgoto e na rede elétrica. Mas a luta mais imediata é por um teto. É o que é mais urgente e concreto. É também o que agrega o povo todo em uma proposta comum. É o estopim necessário para que todos se identifiquem como iguais.
Nesse sentido, é interessante observar como as ocupações do MTST instauram uma outra forma de convivência, baseada em ideais mais comunitários, no interior dos acampamentos. As cirandas são locais em que as crianças moradoras das ocupações passam o dia. Os pais podem deixá-las em segurança, sabendo que serão cuidadas por pessoas da própria comunidade. As experiências dos saraus, em que cada um mostra algo que sabe fazer: peças de teatro, leituras de poesia e músicas no violão em torno da fogueira. As cozinhas são comunitárias, o alimento é recolhido por meio de doações e as cozinheiras que se propõem a desempenhar essa função o preparam em grandes quantidades. As decisões são tomadas em assembleia. Instala-se um mecanismo de representação, dentro do qual elegem-se coordenadores de blocos responsáveis por levar às assembleias as propostas do grupo.
São experiências. Não que tudo funcione assim, às mil maravilhas. Longe de afirmar que a vida nos acampamentos seja efetivamente diversa daquela que se leva em uma comunidade ou favela, estamos diante de promessas. Há muito a ser trabalhado. Mas o gesto de insubordinação inicial, de desrespeito mesmo à sacralização da propriedade privada, talvez coloque essas pessoas em condições de questionar, com a mesma radicalidade, os consensos em torno dos quais se articulam hoje a vida em sociedade. O modelo vigente, do trabalho alienado, é contraposto ao trabalho realizado dentro dos acampamentos, em benefício de todos: não apenas o trabalho na cozinha, mas também a segurança, a construção de fossas, a negociação com os moradores vizinhos, entre outros. A posição da mulher, que muitas vezes é a chefe da família (com ou sem o marido ao lado), coloca em protagonismo a atuação delas no interior desses movimentos. A própria noção de educação tradicional é reavaliada, com decisões pontuais, mas não por isso menos importantes do ponto de vista simbólico, como homenagear João Cândido, marinheiro negro, líder da revolta das chibatas, dando seu nome a um dos maiores acampamentos já realizados, em Itapecerica da Serra.
Ainda é pouco, muito pouco, para fazer frente ao status quo. Basta ver o massacre aos sem teto que foi a desocupação do Pinheirinho, em São José dos Campos. A fragilidade e a instabilidade dos movimentos sociais é patente. E isso sem entrar no quanto eles estão sujeitos à cooptação política, a ceder em seus princípios em troca de poucos favores ou concessões. Despejo após despejo, é difícil renunciar a alguns benefícios proporcionados pelos governos locais. Essa questão, bastante relevante após dez anos do Partido dos Trabalhadores no poder, é aludida no livro de Boulos com pertinência e coragem. Mas, num horizonte político tão conformado, tão carente de atitudes realmente insubordinadas, os acampamentos são um feito e tanto. Esse gesto de insubordinação, espécie de afronta a valores sedimentados socialmente, a capacidade de questionar estruturas que continuam operando, embora muitos as reconheçam como desfuncionais, está na base das ocupações por moradia.
Não seria também esse mesmo tipo de insubordinação, de gesto de ruptura, de não acomodação aquilo que está presente em alguns dos melhores trabalhos de arte? Eles também, a sua maneira, constroem esse campo crítico, expõem fraturas sociais, indicam pontos cegos, mostram possibilidades até então não abertas. Seria muito bom ver um encontro entre esses dois campos. Um movimento social contaminado pela noção radical de liberdade, que a arte normalmente é portadora, e uma arte que atue próxima ao real, abandonando o pequeno e restrito circuito institucional das artes.
Fonte: http://materias.atelie397.com