RIO - Quando o Sistema Solar estava se formando, há cerca de 4,5 bilhões de anos, a Terra foi atingida por um corpo planetário do tamanho de Marte, numa gigantesca colisão que os cientistas acreditam ter dado origem à Lua. Mas o ?inferno? do planeta estava longe do fim. Milhares de objetos grandes e pequenos ainda cruzavam nossa vizinhança no espaço, promovendo um bombardeio que se estendeu por algumas centenas de milhões de anos até que finalmente Terra e Lua pudessem esfriar e suas crostas conseguissem se solidificar.
Conhecido como Era Hadeana (referência a Hades, termo que designa tanto o deus quanto o reino do submundo ?infernal? dos mortos na mitologia grega), essa época nem constitui um período geológico em si, já que praticamente não foram encontradas rochas tão antigas assim. As mais velhas têm 3,8 bilhões de anos, com exceção de milimétricos cristais de zircônio achados na Austrália e datados de 4 bilhões a 4,4 bilhões de anos atrás. E a razão disso seria justamente o bombardeio sofrido pelo planeta, que constantemente derretia grandes extensões de sua superfície e as misturava com o material do manto.
VIDA MESMO SOB A TEMPESTADE
Durante muito tempo, essa falta de evidências físicas, também apagadas por bilhões de anos de erosão, dificultou o trabalho dos cientistas em estudar como era essa Terra primitiva e como se deu o superbombardeio. Agora, porém, um grupo de pesquisadores do Instituto de Pesquisas Southwest, nos EUA, conseguiu reconstruir o que teria acontecido com nosso planeta em suas primeiras centenas de milhões de anos de existência, revelando que, mesmo naquelas condições infernais, teriam restado pequenos oásis que podem ter permitido que a vida surgisse. Com isso, os cientistas esperam ter esclarecido dois mistérios: o motivo de não se encontrarem rochas mais antigas que 3,8 bilhões de anos e por que há sinais de que organismos vivos podem ter existido na Era Hadeana.
? Pensava-se que, por causa desses asteroides e cometas voando e colidindo com a Terra, as condições no planeta seriam simplesmente infernais ? conta Simone Marchi, cientista planetária do instituto americano e principal autora de artigo sobre o estudo, publicado na edição desta semana da revista ?Nature?, acrescentando que análises de minerais presos nos poucos cristais de zircônio da época ?sugerem que havia água líquida na superfície da Terra de então, o que entra em conflito com a imagem? de inferno total.
Para ter uma ideia do que aconteceu com a Terra e os efeitos desses impactos sobre o planeta, os pesquisadores voltaram sua atenção para a Lua. Como nosso satélite se formou na mesma época, sua superfície coalhada de crateras, preservadas pela prática ausência de processos de erosão, serviu de modelo para calcular qual teria sido a intensidade do bombardeio sofrido pelo planeta, assim como o tamanho dos objetos que o teriam atingido.
? A superfície da Terra durante a Era Hadeana foi pesadamente afetada por enormes colisões com objetos realmente muito grandes, com mais de 100 quilômetros (de diâmetro) ? diz Marchi. ? Quando um objeto tão grande colide com a Terra, o impacto derrete um grande volume da crosta e do manto, cobrindo uma extensa parte da superfície. Não há dúvidas de que a crosta foi constantemente escavada, misturada e enterrada como resultado desse bombardeio.
De acordo com as simulações feitas por Marchi e seus colegas, algo entre um e quatro objetos com pelo menos mil quilômetros de diâmetro atingiram a Terra antes de 4,2 bilhões de anos atrás, em impactos capazes de efetivamente esterilizar o planeta. Houve ainda três a sete colisões com corpos de 500 quilômetros de diâmetro que esvaziaram os oceanos, enchendo a atmosfera com vapor d?água. Juntos, todos esses corpos e centenas ou milhares de outros menores teriam contribuído com entre 0,5% a 1% da atual massa total do nosso planeta.
? Ao observar esse modelo, chegamos à conclusão de que a Terra só se tornou habitável depois de 4,2 bilhões de anos atrás ? destaca Marchi.
Mas, apesar de esses achados sugerirem que a Terra era mesmo um inferno durante a Era Hadeana, os pesquisadores descobriram que os intervalos entre as catastróficas colisões devem ter sido significativos, dando tempo para que a vida surgisse, em especial organismos capazes de resistir às altas temperaturas do ambiente na época.
? De modo geral, provavelmente tivemos algo na ordem de 20 a 30 impactos com objetos de mais de 200 quilômetros de diâmetro durante os 500 milhões de anos da Era Hadeana, então o tempo entre as colisões foi relativamente longo ? comenta Marchi. ? Talvez tenha havido épocas quietas e tranquilas entre as colisões, em que a água líquida possa ter existido na superfície dessa Terra primitiva.
EXPLICAÇÃO PARA O FORMATO DA LUA
Já em outro artigo também publicado na edição desta semana da ?Nature?, pesquisadores da Universidade da Califórnia em Santa Cruz mostram que as forças de maré exercidas tanto pela ação da gravidade da Terra quanto pela própria rotação da Lua durante sua fase de resfriamento, nos primeiros 500 milhões de anos após o impacto com o corpo planetário do tamanho de Marte, deram ao nosso satélite natural o formato atual. Diferentemente do que se imagina, a Lua, assim como a Terra, não é uma esfera perfeita. No caso do satélite, ele apresenta uma forma ovalada parecida com a de um limão, com uma protuberância voltada na direção de nosso planeta e outra no lado contrário.
Os dois processos de maré, no entanto, deixaram assinaturas distintas no campo de gravidade da Lua. Há cerca de 4,4 bilhões de anos, o aquecimento provocado pelo constante puxa e empurra dessas forças fizeram com que a crosta do satélite ficasse mais fina nos polos e mais grossa nas regiões alinhadas com a Terra. Além disso, o campo de gravidade da Lua não está mais alinhado com sua topografia, o que teria acontecido se as protuberâncias provocadas pelas marés tivessem sido ?congeladas? em seu formato.
Fonte: O Globo