Contracenando com Chico Diaz, no filme Praça Saens Peña.A crônica que dá título a esta postagem e que reproduzo integralmente a seguir foi extraída do delicioso livro ?Rua dos Artistas e adjacências? (depois rebatizado de ?Rua dos Artistas e transversais?), do grande Aldir Blanc. Após ter sido publicada na edição do Pasquim de nº 341, é uma história que mostra o espírito despojado e sem frescuras do carioca e onde, mesmo que você não conheça o Rio, dá para perceber com toda a clareza a "evolução" em nome do progresso, as mudanças de comportamento (apesar de algumas coisas resistirem bravamente à passagem do tempo) e, o pior de tudo, a transformação sofrida por uma cidade que já foi muito mais maravilhosa do que já é.
Se você conhece o Aldir apenas por sua parceria com, o também brilhante, João Bosco, ou por ser um dos maiores letristas da música popular brasileira, vou pegar leve e só digo que você não sabe o que está perdendo. Mas, na pior das hipóteses, se você nunca ouviu o seu nome, eu lhe pergunto: Em que planeta você vive, cara pálida?
Pois bem. Deixemos de enrolação e vamos direto ao assunto.
Com a sua licença, mestre.
O feijão e as carnes ficaram de molho desde a véspera. As laranjas escolhidas, a farinha torrada, o limãozinho a postos, as cachaças ? no plural, porque tem a boa pra batida e tem a purinha pra um minuto antes de cair de boca -, a pimenta, os engradados de cerveja... Engradados? Eram engradados, sim. Tu não ta lembrado porque a memória da classe média diminuiu junto com a queda do seu poder aquisitivo.
Domingo de Fla-Flu e a moçada se reunindo pra mais uma imortal feijoada. Chegava a ser um troço meio ritualístico, mas e daí? Que que o distinto tem contra um ritual que inclui cachaça, à sombra das goiabeiras em flor, piadas e mulher?
- Ô Anacleto, tira esse paletó!
- Manda o geleiro colocar as pedras no tanque com as cervejas.
- Seu Aguiar, tomei a liberdade de trazer uma caninha de alambique. É lá da minha terra, coisa fina...
E por aí afora... Era uma época, meus prezados, em que o ? hoje chamado ? status de uma família era medido pelo esplendor da cascata de camarão nos aniversários, e não pelo fato de residir, comendo sanduíche de mortadela, num dos sala-pinico-e-fogareiro do Edifício Struvenga du Marquis de Sade, com jardins de isopor e chafariz de acrílico, vendo-se na entrada a pitoresca escultura da cabeça do referido marquês (ou da struvenga dele). Resumindo: os Sérgios Dourados da vida ainda não haviam começado (justiça seja feita: com a prestimosa colaboração das autoridades!) a destruir o corpo e a alma do Rio.
Recadinho: cume, ô católicos? Vamo reagir que agora foi com a alma. Se o corpo sifu, não há problema ? contanto que não seja o de vocês ? mas eu pergunto: e a alma? E A ALMA, POMBA?
Onde é que eu tava mesmo?
- Com a boca cheia de cabelo!
Pois é. Num domingo de feijoada e Fla-Flu, os homens tavam sentados nuns bancos verdes que ficavam embaixo das goiabeiras e, enquanto a batidinha escorregava,, o Penteado, tremendo gozador, sugeriu:
- Vamos eleger a mulher ideal!
Todos acharam a ideia encantadora, menos o Anacleto, que continuava de paletó:
- Essa brincadeira... conheço meu gado... a Heronda é uma leoa.
De fato. Com espessos cabelos avermelhados, grossas sobrancelhas, indisfarçável buço e pelos nas pernas robustas, a Heronda lembrava um pouco o mamífero acima. E morria de ciúmes do Anaca, apelido posto, carinhosamente, pela própria.
- Deixa disso, Anacleto. E tira esse paletó, rapaz...
Penteado organizava:
- A gente vai pegando uma parte de cada uma. E tem o seguinte: eleição livre, voto direto!
Dá uma nostalgia, né?
Tio Odorico, meio afoito, abriu o marcador:
- As coxas da Renata Fronzi!
Meu avô, com a gravidade que o momento exigia do chefe da casa, sugeriu:
- A voz da Ísis de Oliveira.
Alguém, após cuspir um carocinho de limão, perguntou:
- Não vai ter nada da Virgínia Lane? Que que tua acha, Anacleto?
- Sei lá... essa brincadeira... a Heronda... sei lá...
Um grande momento da votação: a bunda. Meu primo Esmeraldo, conhecido pelas domésticas da Penha como Simpatia-é-quase-Amor, pigarreou e lascou:
- Olha, pessoal... Eu não sei se vocês vão achar meio fora de jogada, mas pra bunda eu voto, com todo o respeito, na arrumadeira aqui da casa, a Maria Luísa.
Verdadeira aclamação. O pai do Esmeraldo não se conteve:
- Tô orgulhoso de você, meu filho. Deus é testemunha de que...
Parou a frase no meio, com certeza embaraçado de tomar o Santo Nome num assunto ? pra sermos precisos ? tão bunda.
E a brincadeira foi em frente. Quando a mulher tava prontinha, com os seios da Isolda (que morava em frente), o umbigo da Isa Rodrigues, tudo certo, o Penteado lembrou:
- Pô, esquecemos do rosto!
Justamente no rosto, o Anacleto, já sem paletó, não agüentou. Era doido pela Eliana. Dizia mesmo que ?era incrível ela topar aquela múmia?, referindo-se ao Renato Murce, que acabava pagando o pato. Depois de um grande gole, falou grosso:
- Deixa comigo, o rosto é comigo!
- Rosto de quem, Anaca?
Era a Heronda, de mãos nas cadeiras, cabelos e pelos já se eriçando, mais leoa do que nunca.
Anacleto matou no peito, suspirou e chutou:
- Rosto... Em matéria de rosto, eu fico com o do Belini.
E levantando-se, à sombra das goiabeiras em flor, guimba de Astória no canto da boca, fez o convite, olhando pra dentro do copo:
- Senta aqui, nega. A gente tá brincando de viado.