Para Ricardo Antunes, humanidade deve pensar que sociedade quer: uma que destrói trabalhadores ou uma que os dignifica
Por Vinicius Mansur
O EMPRESARIADO se movimenta para obrigar os assalariados a pagar pela atual crise econômica. A principal tática é utilizar as demissões para garantir os lucros e pressionar pela flexibilização de direitos. Para resistir, os trabalhadores devem atuar de modo organizado, pautando um debate sobre qual deve ser a sociedade do século 21. Em entrevista, Ricardo Antunes, professor de sociologia da Unicamp, aprofunda essa análise, elogia os governos da Bolívia, Cuba, Equador e Venezuela e critica o brasileiro, “um partícipe da ordem”.
Brasil de Fato – O senhor tem dito que é falsa a dicotomia flexibilização dos direitos trabalhistas e desemprego? Por quê?
Ricardo Antunes – A ideia de flexibilizar direitos para preservar empregos é uma falácia e, no limite, uma falsidade. Vários países, como Inglaterra, Argentina, Espanha, Itália e até mesmo a França, tentaram flexibilizar direitos com o pretexto de melhorar as condições de emprego e o que se vê, de todas essas experiências, é que a flexibilização foi uma forma de precarizar os direitos. Isso porque, em situações adversas, os trabalhadores flexibilizam os direitos e, com isso, perdem direitos que eles não recuperam depois.
Na verdade, o empresariado quer é fazer com que as contas nesse momento de crise sejam jogadas em cima da classe trabalhadora. Quem deve pagar essa conta é o próprio empresariado e o seu sistema financeiro, pois eles são os agentes partícipes e os responsáveis por essa crise. Porém, o empresariado não diz “trabalhadores, vocês vão pagar a conta”. Eles afirmam, “trabalhadores, vamos flexibilizar para garantir os seus empregos”.
Ora, quem acredita que irá se fortalecer tendo os seus direitos destruídos? É uma fala mistificadora e é muito importante que a classe trabalhadora perceba, porque, se em um momento de crise como essa ela aceita a redução de direitos, não conseguirá recuperá-los depois facilmente. Lembre-se que no governo Fernando Henrique Cardoso houve, entre várias medidas para flexibilizar o contrato de trabalho, aquela que permitia os contratos temporários. Isso fez com que muitos trabalhadores hoje peguem empregos temporários e, quando eles vão completar três meses de experiência para ficar no emprego, as empresas os demitem para não configurar estabilidade. O que tenho mostrado é que este momento que o capital chama para flexibilizar direitos é de fato para que a conta [da crise] seja paga pela classe trabalhadora.
Como pode acontecer essa flexibilização?
O empresariado começa a falar em várias alternativas. Por exemplo, suspender o contrato de trabalho por um período de dez meses. Na verdade, a suspensão do contrato é a iminência do desemprego completo. A CLT [Consolidação das Leis do Trabalho] já contempla modalidades desse tipo de suspensão do contrato por um período de até cinco meses. O problema é que o empresariado está fazendo várias propostas para tirar dele o ônus da crise.
É importante ficar claro que o empresariado deve reduzir os seus lucros. Todos falam em reduzir direitos do trabalho, por que não falar em flexibilizar a propriedade privada? Ou seja, por que não pensar em propriedade não inteiramente privada, mas que os trabalhadores tenham acesso à propriedade do capital? Porque eles não flexibilizam aquilo que, para eles, é o fundamental. Agora, é preciso que a sociedade entenda que, para a classe trabalhadora, o trabalho é a única atividade que lhe permite sobreviver. Se não a exerce, ele está na indigência social, está próximo da economia política do crime, do narcotráfico.
A OIT [Organização Internacional do Trabalho] já fala em 1,5 bilhão de trabalhadores que perderiam, em 2009, salários e viveriam em condições de trabalho mais adversas. Essa é a dimensão do problema. E, dentro dele, ampliar o seguro desemprego é legítimo. O Estado garantir que os trabalhadores desempregados tenham formas de sobrevivência é legítimo. O que não é legítimo é o empresariado, na primeira ameaça de crise, já reduzir custos cortando trabalho para garantir que os prejuízos em seus lucros não sejam grandes. Os trabalhadores não são os responsáveis pela crise, mas sim o próprio sistema de competitividade destrutiva interempresa, acentuado nesse contexto de globalização.
E, dentro desse cenário de globalização do capital, podemos dizer que proposições como essa do layoff (suspensão do contrato de trabalho) fazem parte de uma movimentação global de empresários?
Um traço muito importante da mundialização ou globalização é que o capital se transnacionalizou e, nesse sentido, o seu receituário. Não é por acaso que as propostas de flexibilização atingiram praticamente todos os países do mundo que têm um certo tipo de atividade econômica industrial e de serviços forte. Todos os países sofreram isso: Inglaterra, França, Itália, Estados Unidos, Alemanha e até a China.
E como as empresas são transnacionais, ainda que marcadas pelas particularidades de cada país, elas têm um receituário que é geral. Uma das receitas mais gerais agora é usar o momento para dar um outro salto no sentido de precarizar as condições de trabalho. Por isso que a ideia de que o negociado se sobreponha ao legislado é uma imposição global. Ou seja, vale o que se negocia em cada espaço de trabalho, e não o que diz a lei. Isso porque os empresários estão achando que, em uma situação adversa para os trabalhadores, estes aceitariam negociar situações piores do que aquelas que estão estabelecidas na legislação.
Mas, por outro lado, é muito importante nós percebermos que as lutas dos trabalhadores também são globais.
Uma resistência no Brasil, no México, nos Estados Unidos, dos trabalhadores chineses, na Alemanha, na Bolívia, na Venezuela, na Coreia, no Japão, enfim, essas lutas que nós estamos presenciando hoje têm uma dimensão mundial.
Quais os caminhos práticos a se trilhar para responsabilizar os verdadeiros responsáveis?
A primeira coisa é que mais uma vez querem responsabilizar os migrantes pela crise. Esses trabalhadores já estão comendo o pão que o diabo amassou. Porque, evidentemente, a primeira tacada, o fechamento dos trabalhos mais precarizados, mostra o fundo do poço para vários setores dos trabalhadores. Por exemplo, os decasséguis brasileiros que estão no Japão são mandados embora de suas empresas e não têm mais onde dormir, pois, no geral, moram em alojamentos das companhias.
O primeiro desafio então é resistir e impedir que essas mudanças sejam impostas agora nessa situação de crise. E só há um jeito de impedir essa medidas, entre aspas, de flexibilização: resistir de modo organizado, nos locais de trabalho, com apoio do sindicato. E também com apoios de todo tipo, que permitam mostrar para a sociedade que não é justo a classe trabalhadora pagar pela crise.
O empresariado tem uma visão microcósmica. Ele pensa assim, “tem crise, eu vou arrochar, diminuir os custos da minha empresa e, então, desempregar”. Só que essa racionalidade empresarial gera uma monumental irracionalidade na sociedade.
Porque explode e aumentam os bolsões de desempregados, de precarizados, de miseráveis e isso cria uma sociedade na qual não é mais possível viver.
Não adianta o empresariado andar de carro blindado ou morar em condomínios fechados ultrassecretos quando, em algum momento, ele se torna vulnerável, dada essa verdadeira guerra civil latente que existe nas grande capitais do mundo. Assim, o desafio, agora, é questionar que sociedade nós queremos. Faz sentido uma sociedade que, numa primeira crise, penalize os que não são culpados por ela? Faz sentido jogar bolsões de trabalhadores nas ruas, na medida em que eles não terão outra alternativa de trabalho? Ou não será o momento do empresariado pensar num plano de sociedade e não no seu plano microcósmico e dizer: “Agora é o momento do empresariado pagar por isso”?
Sabe por que, nos Estados Unidos, uma parte importante do Congresso não concedeu recursos para as montadoras? Pois disseram que os recursos eram para desempregar trabalhadores e os altos gestores não teriam nenhuma redução nos seus monumentais ganhos. Ou seja, eles foram os responsáveis pela crise e não foram penalizados. Por isso, uma parte dos que disseram não a esse subsídio para General Motors, Ford e Chrysler perguntaram: “qual vai ser a contrapartida que essas empresas vão dar? Elas vão tocar nos seus ganhos, nos seus lucros, nos seus benefícios?”
E a crise abre uma possibilidade real da sociedade fazer esse debate?
Claro, primeiro porque uma grande parte da esquerda acreditou que o capitalismo era a única alternativa e está há décadas tentando consertar o inconsertável. Mas agora o capitalismo está numa crise profunda. A sociedade está em ebulição e uma parte importante dos movimentos sociais e dos partidos de esquerda tem a consciência de que o capitalismo não é o remédio. E é nesse momento de tensão, de crise profunda, que nós somos chacoalhados a buscar a alternativa.
A virada do século 19 para o 20 foi um momento de turbulência. A guerra mundial, a disputa interimperialista. Naquele momento se viveu uma era turbulenta que balançou os alicerces da sociedade instaurada. Fazendo as devidas diferenciações, nós estamos também numa época assim. O que está acontecendo na Venezuela? Na Bolívia? No Equador? São exemplos alternativos, são movimentos populares fortes, há uma impulsão da luta social dizendo, “não queremos a mesma resposta”. Diferente do caso brasileiro, no qual o governo é um partícipe da ordem.
Mas há na luta latino-americana sinais do novo, contra a privatização do petróleo, da água, dos recursos naturais. Lutas sociais pedindo mudanças políticas mais profundas. A América Latina está vivendo novas experiências. Há também no mundo asiático uma tensão diária, lutas sociais. É evidente que nós estamos presenciando no mundo hoje algo muito diferente do que [Jürgen] Habermas chamou há 20 e tantos anos de “pacificação das lutas sociais”. Nós estamos vivendo um momento de tensão das lutas sociais. E isso é muito importante, porque é nesse quadro de tensões que, por exemplo, um lema que estava completamente abandonado voltou a ser lema inclusive de alguns governos: o socialismo do século 21. Você deve se recordar que há dez anos se dizia que o socialismo tinha morrido.
Só que mesmo esses governos ainda não apontaram saídas para a crise.
Certamente. O quadro de crise, dessa vez, começou nos Estados Unidos há pelo menos um ano, mas a sua forma avassaladora, intensa, se desenvolveu nos últimos cinco, seis meses. Agora, veja, esses governos estão, ao seu modo, há anos, tomando medidas preventivas importantes.
Quando o governo [Hugo] Chavéz impediu a privatização da PDVSA, há 10 anos, ele estava tomando uma medida decisiva para que o futuro da Venezuela não fosse leiloado, como havia sido o do México na crise dos anos de 1990. Na ocasião, uma parte do petróleo mexicano se tornou de utilização direta dos EUA. A saída não tem um receituário. Até porque ninguém sabe, com todas as letras, qual é a sua amplitude e fundamentação mais estrutural. Há reflexões importantes nessa direção, mas nós estamos carentes de estudos mais aprofundados na perspectiva crítica.
De todo modo, é muito importante saber que a saída é a auto-organização popular, não uma série de medidas. Não adianta o governo dos EUA estatizar os bancos, isso é chafurdar o Estado em um sistema financeiro que ele não controla. Os desafios são mais profundos. Em um segundo plano, [a saída para a crise] passa por preservar os direitos até aqui conquistados e não permitir que eles sejam destruídos. Em terceiro lugar, é preciso avançar e fazer com que qualquer penalização sobre os trabalhadores seja, na medida do possível, impedida. Essas são as medidas que podem ser tomadas.
É evidente o esforço da Venezuela, da Bolívia, do Equador e de Cuba, que sabem que é mais fácil sair desse quadro crítico em bloco. Essa é uma diferença muito clara entre o governo Lula e o governo venezuelano. O primeiro imagina que é possível sair dessa crise integrando- se com alguma autonomia no mundo globalizado, ao passo que Venezuela, Bolívia, Equador etc. estão buscando uma forma de integração que não seja dependente das regras destrutivas do mercado.
Alguma consideração ainda a fazer?
Quem sabia, no início do século 20, quais seriam as alternativas possíveis? Ninguém. E olha que se tinha uma camada de intelectuais revolucionários que era majestosa, brilhante. Quer dizer, no século 21, a humanidade tem que trazer para si o desafio de pensar que sociedade ela quer. Ela quer manter essa sociedade destrutiva como está, na qual todas as penalizações incidem sobre as classes que vivem do trabalho? Ou vai buscar uma alternativa na qual a dignidade do trabalho será dotada de sentido contra as regras destrutivas do mercado?
FOnte: Jornal Brasil de Fato
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