Geografia
Pior lixo do History Channel não foi alvo de South Park
Em 2011, a série de animação South Park - que eu aprecio muitíssimo - fez uma gozação merecida com o History Channel. Os garotos da série precisavam fazer um trabalho escolar sobre o Dia de Ação de Graças e, por sugestão do Cartman (só podia ser dele!), viram um documentário desse canal. O programa afirmava ter havido alienígenas presentes no almoço em que teria sido selada a paz entre colonizadores e nativos, posto que, não havendo registros históricos de que se preparassem perus com recheio antes dessa ocasião, tal tecnologia só podia ter vindo do espaço... Como disse o Kyle, "isso não é história"!
O mais triste, porém, é constatar que os piores programas do History Channel não são aquelas brincadeiras sobre alienígenas do passado, e sim os documentários da série Humanidade: a história de todos nós. Tecnicamente, essa série é fantástica. E a maioria dos episódios parece estar baseada em informações históricas fidedignas e que permitem traçar relações muito interessantes entre acontecimentos da história. Contudo, os episódios da série que tratam da colonização das Américas são um lixo mistificador tão grotesco que os roteiros conseguem ser piores do que os escritos de Eduardo Galeano!
Com efeito, esse documentário sustenta que 500 (quinhentos) espanhóis conseguiram vencer um império de 25 milhões de Astecas porque usaram a estratégia do "efeito dominó". Hernán Cortez teria percebido que, se sequestrasse o imperador Montezuma II, destruindo a credibilidade dele junto aos seus súditos, os outros líderes astecas iriam também cair um a um por falta de credibilidade. A dramatização de como o sequestro teria acontecido é uma verdadeira pérola do humor involuntário: Montezuma aparece sentado em seu trono numa conversação amigável com os soldados espanhóis quando, inesperadamente, Cortez apontou sua espada para o pescoço do soberano asteca, enquanto seus subordinados sacavam também das espadas para dominar todos os demais presentes.
É óbvio que um governante asteca ou de qualquer outro império do mundo jamais seria tão ingênuo e idiota a ponto de receber estrangeiros armados para ter com eles um bate-papo descontraído na sala do trono. Mais óbvio ainda é perceber que não faz o menor sentido supor que milhões de astecas iriam dar as costas para seus líderes e se render aos espanhóis, à medida em que estes avançassem pelo império, só porque Montezuma II teria sido covarde. Então os astecas achavam que, se o seu líder maior tinha sido estúpido ou covarde, todos os outros líderes necessariamente teriam de ser iguais a ele e, portanto, o melhor era se entregar sem muita resistência a invasores estrangeiros descritos no documentário como saqueadores cruéis e gananciosos? Ora...
O que era ruim ficou pior
Na adolescência, minha professora de história me mandou ler As veias abertas da América Latina, do jornalista Eduardo Galeano (Paz & Terra, 1982). Nesse livro, o autor faz grandes elogios aos astecas (uma das civilizações mais cruéis da história da humanidade) e afirma que os espanhóis venceram por causa da superioridade tecnológica do seu armamento, do uso da cavalaria e das mortes provocadas por doenças.
Trata-se de uma grande mentira, pois o exército comandado por Hernán Cortez chegou a somar mais de dois mil homens, sendo a grande maioria deles nativos que lutaram ao lado dos espanhóis contra Montezuma e outros líderes locais em função de disputas de poder internas ao império e do desejo dos povos submetidos pelos astecas de se libertar destes. Mas, mesmo omitindo esses fatos cruciais, ao menos a fantasia de Galeano tem algum lastro em documentação histórica.
Como explicam Leandro Narloch e Duda Teixeira, no Guia politicamente incorreto da América Latina (Leya, 2011), a versão de que poucas centenas de soldados espanhóis conseguiam matar e afugentar hordas de milhares de nativos com disparos de canhão e cavaleiros foi construída pelos próprios conquistadores em seus relatórios para a coroa espanhola. Ironicamente, aqueles que, como Galeano, escondem a participação dos nativos na conquista dos impérios Asteca e Inca tomam como verdade inconteste a versão dos próprios conquistadores europeus sobre suas supostas façanhas guerreiras. As versões mais próximas da realidade vieram de tapeçarias feitas pelos nativos para narrar como eram suas relações com os conquistadores e relatos escritos por padres que, além de denunciarem atrocidades cometidas pelas tropas espanholas, informaram a coroa da participação decisiva dos nativos no processo de conquista.
Nesse sentido, a versão de idiotas latino-americanos como Eduardo Galeano é falsa, mas ao menos procura lastrear-se em documentos históricos. Já o documentário do History Channel omite a colaboração entre nativos e espanhóis, demoniza estes últimos e ainda constrói uma teoria do "efeito dominó" que se sustenta numa versão ridícula do sequestro de Montezuma e na suposição de que os astecas só resistiriam aos espanhóis se achassem que seus líderes eram corajosos.
South Park ignorou o alvo principal
As "teorias" sobre alienígenas do passado merecem ser ridicularizadas, mas são inofensivas. Esses programas do History não passam de brincadeiras bobas nas quais, acredito eu, pouca gente bota fé de verdade. Afinal, o teor de brincadeira se revela já nos penteados daquele "especialista" em astronautas do passado que sempre aparece nos comerciais do History - não sei o nome dele por nunca ter perdido tempo com esses programas.
Por outro lado, as besteiras do History Channel sobre a colonização americana reproduzem mitos que até hoje servem de base para ideologias antiamericanistas e nacional-estatistas de larga influência na América Latina, e cujas consequências políticas e econômicas para a região foram e continuam sendo desastrosas. O roteiro desse episódio de South Park foi divertido, engraçado e pertinente, mas deixou de disparar contra o alvo principal por partilhar da visão de que "os nativos se ferraram" durante a colonização, conforme os garotos disseram sobre a história do Dia de Ação de Graças. Talvez eu trate disso noutra hora.
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