O dragão no teto do mundo
Geografia

O dragão no teto do mundo


O conflito entre a China e o Tibet suscita discussões historiográficas e evidencia a natureza econômica dos desentedimentos. Saiba mais sobre este caso e a participação do Brasil nele.
Bruna Soalheiro

Desde o início de 2008, as tensões entre a China e o Tibet têm ganhado espaço na imprensa ocidental, seja pelo destaque dado à figura do Nobel da Paz Dalai-Lama ou pelo crescimento vertiginoso da China no cenário mundial. O auge das manifestações pró-Tibet ocorreu nas olimpíadas de Pequim, após um março de grande violência. Em ambos os casos, inúmeros manifestantes foram presos, dentre jornalistas e estudantes de várias nacionalidades. Hoje, dois meses após os jogos, o que pode ser dito sobre esse conflito e qual o papel do Brasil nele?

Em março, durante um crescimento da violência no Tibet, o Itamarati declarou-se a favor de uma ?solução duradoura que favoreça a paz e o entendimento na Região Autônoma do Tibet, com pleno respeito às diferenças culturais e religiosas". As manifestações cresciam, muito por conta do 49º aniversário de exílio do líder Dalai Lama. Ao mesmo tempo, o governo brasileiro afirmou reconhecer a ?integridade territorial da República Popular da China?, o que pode parecer um tanto contraditório.

Pelo menos desde 2004, o Brasil reconhece a unidade do território Chinês, sendo favorável ao princípio de "uma só China". É preciso identificar as razões que respaldam esta posição, sem necessariamente reconhecer uma ?verdade histórica? por detrás dela.

Divulga-se na imprensa, por exemplo, o argumento de que o Tibet faz parte da China desde o século XIII. Em certa medida, reconhecer ?uma só China? é estar de acordo com a postura chinesa de que o Tibet é parte inseparável de seu território desde tempos imemoriais e que, assim, as manifestações pró-independência são movimentos de caráter separatista.

Mas do ponto de vista histórico, há uma certa dificuldade de validar a idéia de que o Tibet é parte da China, tal como hoje defendem os chineses e tal como se tem investido atualmente numa ?historiografia? que confirme esta posição.

As relações entre o Ocidente e o Tibet começaram no século XVII, quando um jesuíta português chegou à Tsaparang, na região ocidental do Tibet. Neste período, o Tibet nem se entendia como parte da China, nem foi descrito assim pelos viajantes europeus. Os jesuítas lá permaneceram por aproximadamente dez anos (1624-1635) e os relatos deste período estão acessíveis aos historiadores ocidentais, tanto em sua forma manuscrita, guardada no Arquivo da Companhia de Jesus, em Roma, quanto em versões publicadas em diversas línguas.

No mesmo período, missionários da Companhia de Jesus estiveram presentes também na região central do Tibet. No século seguinte, outro religioso, desta vez um italiano, chamado Ippolito Desideri, viajou ao Tibet, estabeleceu-se em Lhasa ? atual capital da Região Autônoma do Tibet - permanecendo de 1716 a 1721. Desde então, sucederam-se inúmeras viagens ao ?teto do mundo?, tanto no século XIX quanto no XX. E, assim, o Tibet foi sendo ?revelado? progressivamente ao ocidente.

A figura do Dalai-lama como líder religioso e político só surgiu em 1642, contando com uma forte ingerência externa, em especial mongol. O investimento dos dois poderes numa mesma pessoa está vigente até hoje. As relações entre os grupos religiosos e o poder local no Tibet são tradicionalmente complexas e estão intrinsecamente ligadas à religião budista, seja ideologicamente ou através da organização e hierarquização social dos povos.

O budismo floresceu no Tibet a partir o século VIII, mesclando sua origem indiana com formas nativas de manifestações religiosas, em geral agrupadas sobre o nome de Bon. Ao longo dos séculos, disseminaram-se pelo território tibetano vários mosteiros, pertencentes a diferentes escolas budistas e ligados diretamente à lideranças políticas locais.

Em certo sentido, a história tibetana confunde-se com a história da disseminação do budismo. Assim como a associação entre reencarnação e sucessão de poder, isto é algo de difícil compreensão para nós ocidentais.As relações entre o temporal e o religioso no Tibet ora nos parecem inadequadas e ultrapassadas, ora cativam ?celebridades? ocidentais de tal forma que acabam por garantir visibilidade à causa tibetana.

Para aqueles que, ao redor do mundo, seguem a doutrina e a prática do budismo, o exílio do Dalai-Lama possibilitou uma nova disseminação destes ensinamentos milenares, extrapolando as fronteiras do Himalaia.

Em 1949, com o advento da Republica Popular da China e a invasão, no ano seguinte, do território tibetano pelas forças armadas chinesas, o estatuto independente do Tibet ? que durou de 1913 a 1949 no próprio século XX ? viu-se ameaçado. Na década seguinte, houve uma grande revolta, que terminou com o exílio do XVIº Dalai-Lama e seu estabelecimento na Índia, onde se encontra desde então.

Enquanto os representantes do movimento de independência do Tibet denunciam a violência chinesa, a destruição de templos budistas e a perseguição aos civis, a China defende o progresso econômico naquela região e reitera que tem investido na conservação da cultura tibetana.

Por outro lado, o afluxo sem precedentes de migrantes chineses ? de etnia han ? em cidades do Tibet, as restrições na utilização do espaço por parte de pastores nômades, a diluição da utilização do idioma nativo frente à língua chinesa e, finalmente, a ausência do líder político-religioso em terras tibetanas são fatores que contribuem para a progressiva deterioração do Tibet, tal como ele é entendido pelos tibetanos e tal como foi conhecido pelo ocidente até o início do século passado.

No que toca a orientação da política externa brasileira e seu alinhamento com a posição chinesa, sua coerência reside nos atuais interesses econômicos com este país. Acompanhando a ?ascensão? e o ?declínio? das civilizações, a História pouca ajuda oferece para justificar o interesse chinês no Tibet ? cujas raízes também são essencialmente econômicas, pois visam as riquezas minerais tibetanas ? ou elucidar o papel oficial no Brasil nesta contenda.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional




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