Evandro Farid Zago
O fato de que o movimento talibã exerce influência sobre a conjuntura paquistanesa não é elemento novo nas relações internacionais. No entanto, desde o início de 2009, o grupo baseado no Afeganistão intensificou sua presença no território do Paquistão e adotou novas estratégias de conduta. Atualmente, o panorama atingiu níveis críticos, de forma que o terror passou a ser disseminado nas regiões de fronteira e o próprio projeto de Estado paquistanês foi colocado em risco.
O Talibã caracteriza-se por ser movimento político e religioso que governou o Afeganistão entre 1996 e 2001. O grupo segue a linha wahabbista do sunismo islâmico e é mundialmente conhecido pelo caráter fundamentalista de sua militância. Seus comandantes são, em essência, homens provenientes de instituições de ensino muçulmanas e de pequenas unidades militares. Na formação do Talibã, é notável a presença de afegãos que estudaram em escolas islâmicas paquistanesas. Ademais, a principal etnia que integra o movimento é a dos pashtuns, concentrada no leste e no sul do Afeganistão e no oeste do Paquistão. Percebe-se, destarte, que o contingente de pessoal do Talibã é, em grande parte, formado senão por indivíduos de nacionalidade paquistanesa, por homens que, de alguma forma, possuíram relações com o Paquistão ao longo de sua vida.
O movimento possui ainda parte de suas bases localizadas em território paquistanês. As Áreas Tribais Federalmente Administradas, região detentora de autonomia de facto, mas formalmente vinculada a Islamabad, é, em larga medida, habitada por membros do grupo. Além disso, durante vários anos, o Estado do Paquistão forneceu ajuda ao movimento. Durante a década de 1990, foi-lhes enviado auxílio financeiro e militar a partir do país vizinho, o que viabilizou a tomada do poder federal afegão em 1996.
Se a relação do grupo extremista com os paquistaneses resumisse-se ao acima descrito, é provável que a comunidade internacional jamais tivesse desviado maior atenção a ela. Contudo, a ligação do Talibã com a rede terrorista Al Qaeda e o envolvimento desta nos ataques terroristas de 2001 fizeram com que o panorama local fosse reestruturado. Em 1996, Osama bin Laden, líder da rede, mudou-se do Sudão para o Afeganistão. Após período de desavenças com locais, bin Laden arquitetou e consolidou aliança entre os dois grupos. Anos depois, como reação ao 11 de setembro, os EUA capitanearam reação global ao terrorismo. Foi lançada, então, a Guerra contra o Terror, dirigida, num primeiro momento, à Al Qaeda. O fato de a organização estar centrada no Afeganistão e de essa possuir aliança com o governo local acabou por dirigir a iniciativa norte-americana ao Estado afegão. A estratégia de atuação dos EUA incluiu, como de costume em estratagemas militares, angariação de aliados para combater o inimigo. Nesse contexto, o Paquistão, que já era alinhado à política externa ianque, foi visto como nação de importância estratégica para a guerra que estava por vir. Assim, os paquistaneses cederam aos anseios norte-americanos e tornaram-se uma das principais bases para a invasão do país vizinho.
A enorme disparidade de forças entre a coalizão que atacou o Afeganistão e os talibãs fez com que, ainda em 2001, o movimento fosse retirado do poder. Os anos que se seguiram foram marcados pela hesitante presença internacional na região, o que contribuiu para acentuar os problemas afegãos e para desestruturar ainda mais um Estado que já se encontrava pouco institucionalizado.
As implicações mais diretas da Guerra contra o Terror para a presente crise paquistanesa tiveram início em 2004, quando o Talibã passou a se reestruturar. Contribuíram, destarte, dois fatores para que o grupo fizesse-se mais presente no Paquistão: a presença de forças estrangeiras no Afeganistão, que impediam sua movimentação e organização, e o revanchismo contra o país vizinho, com o qual haviam sido estabelecidos laços ao longo de anos e que agora lutava contra seu movimento.
A partir do início de 2009, a atuação talibã tornou-se mais marcante. Ataques periódicos passaram a ocorrer contra escolas femininas, instituições policiais e prédios governamentais. Ademais, a presença do grupo, que antes se resumia às Áreas Tribais Federalmente Administradas, estendeu-se também para a Província da Fronteira Noroeste. Em contrapartida, as Forças Armadas do Paquistão relutaram em combater o avanço observado. Segundo membros do Exército, a maior ameaça à segurança do Paquistão continuaria sendo a Índia, o que justificaria a presença de 80% das tropas nacionais na fronteira indiana. Dessa forma, durante meses, a atuação militar por parte do Estado paquistanês baseou-se apenas em negociações com líderes talibãs.
Atualmente, julga-se que apenas 38% da Província da Fronteira Noroeste e das regiões em suas proximidades encontrem-se sob domínio do governo paquistanês. A população da região, em conseqüência, encontra-se aterrorizada. Meio milhão de pessoas já foi deslocado pelo conflito, enquanto 500 mil encontram-se em vias de deslocar-se.
Face ao avanço descontrolado do Talibã, percebido a partir do segundo trimestre de 2009, a ação militar paquistanesa tornou-se mais contundente. No início de maio, as Forças Armadas destinaram mais tropas à região e passaram a travar verdadeira guerra contra o movimento pelo controle de territórios. Os resultados não foram expressivos, mas a maior atenção conferida ao conflito é indicativa de aumento do controle federal sobre a região no futuro. Além disso, é destacável o fato de que o Paquistão é detentor de armas nucleares; eventual crescimento desmedido do Talibã poderia fazer com que o grupo tomasse posse de tais armas. O avanço do movimento permitiu que ele se estabelecesse numa região localizada a apenas 100 km de distância da capital Islamabad, onde os arsenais estão concentrados.
A comunidade internacional já manifestou seu apoio ao Paquistão. Os EUA afirmaram que, se necessário, até mesmo adentrarão no território do país com vistas a inviabilizar a ocupação talibã. Membros da União Européia também demonstraram apoio à luta paquistanesa. O governo do Afeganistão, por sua vez, declarou que a derrota do Talibã é de extrema importância para os afegãos, visto que o futuro de seu Estado depende da inexistência de forças internas que inviabilizem sua institucionalização.
A problemática observada no noroeste paquistanês é mostra de como relações estáveis e cooperativas podem transformar-se em caóticas e conflitivas. Mesmo que haja setores da sociedade paquistanesa favoráveis ao movimento, a severidade da recente crise estabelece dúvidas quanto ao restabelecimento da convivência pacífica. Talibã e Paquistão, que antes possuíam relacionamento harmônico, foram inseridos em dinâmicas antitéticas a partir do momento em que a Guerra contra o Terror foi posta em prática. Atualmente, a própria viabilidade do Estado paquistanês é ameaçada e a comunidade internacional luta pela contenção das forças talibãs.
Evandro Farid Zago é Membro do Programa de Educação Tutorial em Relações Internacionais da Universidade de Brasília ? PET-REL e do Laboratório de Análise em Relações Internacionais ? LARI (
[email protected]).
Boletim Meridiano 47
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