Geografia
ÍNDICE PLANETA VIVO E PEGADA ECOLÓGICA
Marina Silva
De Brasília (DF)
Quem tem conta bancária conhece alguns cuidados básicos para operá-la sem correr o risco de enormes dores de cabeça. Sabe que deve evitar recorrer ao cheque especial porque a enrrascada para pagar será grande e, a depender do tamanho do descuido, poderá ser levado à bancarrota. Também sabe que não é muito inteligente mirar-se no exemplo do vizinho imprudente que dilapidou todo o patrimônio, sob o argumento de que "se ele fez bobagem, tenho o direito de fazer também".
Para o planeta vale o mesmo raciocínio. Não dá para sacar a descoberto sobre uma disponibilidade fictícia de recursos naturais e acabar com a nossa "herança" apenas porque outros o fizeram antes. Mas, por incrível que pareça - e com tantas evidências da urgência de mudar esse comportamento - ainda prevalece o discurso de que se os países ricos se desenvolveram com base na exploração intensiva de seu capital natural, é nosso direito fazer o mesmo, até porque teríamos "muita gordura para queimar".
Ao contrário, quem tem hoje reservas de recursos naturais deve conservá-las porque esse é o cacife para o novo padrão de desenvolvimento que parece inexorável. O padrão terra-arrasada do passado não serve mais e quem insiste nele perderá as melhores oportunidades de acertar o passo com o futuro. E no caso brasileiro, nem temos mais toda essa propalada "gordura". Nosso diferencial está se exaurindo rapidamente e já estamos atrasados na decisão de caminhar na direção de novos indicadores de eficiência econômica.
A organização não-governamental WWF faz a cada dois anos um relatório mostrando como anda o impacto das atividades humanas sobre os recursos naturais, por meio do Índice Planeta Vivo (IPV) que compara a biocapacidade (quantidade de área produtiva disponível para atender às necessidades dos seres humanos) e a pegada ecológica, um cálculo que mostra o impacto das atividades e diferentes estilos de vida sobre os recursos naturais.
Todos os habitantes do planeta dependem dos serviços fornecidos pelos sistemas naturais. O relatório da WWF mostra estarmos indo a um ritmo tão acelerado e intenso de consumo dos recursos naturais, a ponto de ameaçar a perenidade desses serviços. É o anúncio de um colapso muito mais grave do que a crise financeira que tanto nos impressiona. Estamos de olho na dissolução do capital dinheiro e não percebemos a aproximação do colapso do capital natureza.
O IPV global traz números e análises muito preocupantes (veja em www.wwf.org.br). Revelam que entramos no ciclo no qual as mudanças climáticas extremas, fruto da degradação ambiental, já colaboram elas mesmas para potencializar efeitos ambientais adversos.
Nas florestas tropicais o IPV caiu 62% em 35 anos, por motivos que, no que nos diz respeito, conhecemos bem, a começar do desmatamento e algumas atividades econômicas descontroladas. A WWF conclui que a pegada ecológica global execede hoje em 30% a capacidade de regeneração do planeta. E que, a continuar nesse ritmo, em meados de 2030 precisaremos de dois planetas para manter nosso estilo de vida.
As cinco maiores pegadas per capita nacionais são dos Emirados Árabes, Estados Unidos, Kuwait, Dinamarca e Austrália. Oito países - Estados Unidos, Brasil, Rússia, China, Índia, Canadá, Argentina e Austrália - possuem mais da metade do total da biocapacidade mundial. Mais de 75% da população mundial vivem em países que superaram sua biocapacidade e, portanto, sustentam seu estilo de vida retirando cada vez mais capital ecológico de outras partes do mundo. Se toda a população mundial tivesse o consumo médio dos americanos, precisaríamos de 4,5 planetas para dar conta da demanda. Ou seja, não é mais possível alimentar a cultura do "padrão americano" como sonho de consumo planetário.
É chegado o momento de entender o quanto de corrosivo e insustentável existe por trás desse padrão, também eticamente questionável pois, ao não ser universalizável, traz em si a gênese da desigualdade. Questioná-lo é abrir portas para reinventar nosso desejo de mundo, caindo literalmente na real. A situação ainda não é irreversível, mas é preciso agir com urgência para mudá-la.
A América Latina aparece no relatório numa situação intermediária, como se sua conta começasse a entrar no vermelho, mas ainda sem ultrapassar o limite do "cheque especial" natural, o que nos coloca numa situação privilegiada para influenciar a definição de novos padrões de progresso, de produção e consumo. Talvez o universo esteja criando a oportunidade de, numa inversão histórica - no momento em que a história mostra mais uma vez que nada é imutável -, trocar os sinais no continente: os países detentores de megadiversidade biológica passariam a ser fonte de soluções de desenvolvimento capazes de constituir o sonho do futuro. Não mais de consumo, mas de vida melhor para todos, com justiça social e respeito ao meio ambiente.
Marina Silva é professora secundária de História, senadora pelo PT do Acre e ex-ministra do Meio Ambiente.
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