A crise atual da inflação dos preços de alimentos na maior parte do mundo derruba dois mitos.
1) O agronegócio é o grande produtor de alimentos;
2) A fome e a desnutrição são causadas pelo fato de a população não ter dinheiro para comprar alimentos, não pela falta de alimentos, que estariam sobrando.
O agronegócio produz apenas uma parte dos alimentos. A outra parte é produzida pela agricultura camponesa ou familiar, ou ainda por pequenos produtores e sitiantes, como possam ser chamados os produtores não capitalistas. Essa parte, no geral, significa metade; no particular significa mais ou menos da metade. O agronegócio pode produzir mais cana, mas são os camponeses que produzem mais café e leite. O agronegócio pode produzir mais soja, mas são os camponeses que produzem mais feijão, mandioca, cebola e banana.
Para esconder essas diferenças, os ideólogos do agronegócio construíram a imagem do agronegócio como totalidade e, nesta lógica, o campesinato seria parte disso. Ainda nesta lógica perversa, o agronegócio controla 70% dos territórios produtivos, 90% dos recursos públicos para financiamento e produz somente 50 %. E mesmo assim se projeta como mais competitivo que o campesinato, que controla somente 30% dos territórios produtivos, apenas 10% dos recursos públicos de crédito e produz 50% dos alimentos. Na verdade, agronegócio e campesinato são sistemas distintos definidos por relações sociais diferentes: capitalistas e não capitalistas. Enquanto o agronegócio concentra, o campesinato distribui.
A crise atual derruba dois mitos e revela que o agronegócio é uma farsa. A lógica das empresas capitalistas, autodenominada agronegócio, é produzir mercadorias e não alimentos. Se as mercadorias podem ser também alimentos, nem sempre os alimentos podem ser mercadorias. Não se pode pensar a soberania alimentar a partir da lógica das empresas capitalistas, porque elas não têm a preocupação de garantir o direito à alimentação. Essa preocupação é do Estado e da sociedade.
A falta de alimentos no mundo tem duas razões: aumento do consumo maior que o aumento da produção de alimentos. Não estou ressuscitando a teoria de Malthus, da progressão geométrica do crescimento da população e da progressão aritmética do crescimento da produção de alimentos. Temos terra, gente e tecnologia para produzir alimentos em abundância para todos. Todavia, o grau de concentração da riqueza, das terras, das tecnologias e dos conhecimentos é tão intenso que produziu a crise atual.
E a crise atual é resultado de quase duas décadas de políticas neoliberais que controlam o Estado, dominam ministérios e defendem os interesses das empresas capitalistas em detrimento dos interesses da sociedade. É preciso recuperar o Estado, os ministérios e as secretarias das mãos dos tecnocratas do neoliberalismo para que possamos desenvolver políticas de interesses da nação, não as políticas de interesse do patrão. A implantação de uma política de soberania alimentar é urgente para que os efeitos da crise atual sejam minimizados. O agronegócio controla hoje no Brasil 300 milhões de hectares, todavia utiliza apenas 120 milhões. Restam 180 milhões de hectares para serem utilizados na reforma agrária voltada para a produção de alimentos.
A crise atual tende a aumentar com a ampliação das monoculturas para a produção de agrocombustíveis. O planejamento territorial é urgente para evitar um colapso. É preciso definir limites para as diferentes culturas e garantir o desenvolvimento. Estamos diante de um grande desafio: romper com as políticas que promovem a concentração da população nas grandes cidades e concentram as terras no campo.
É preciso defender políticas que democratizem o acesso à terra, ao conhecimento e às riquezas. Esse desafio possui diferentes escalas. Na escala nacional as políticas de soberania alimentar garantem o abastecimento interno e na escala internacional as políticas protecionistas precisam ser equivalentes entre os países pobres e os países ricos. Isso significa o fim da Organização Mundial do Comércio, que não tem competência para defender os interesses das nações. Os interesses do comércio não podem estar acima dos interesses da soberania.
A crise atual é um indicador de uma nova etapa da história. A etapa pós-neoliberal. Como afirmou o líder camponês francês José Bové: o mundo não é uma mercadoria.
Bernardo Mançano é professor de geografia dos cursos de graduação e pós-graduação da Universidade Estadual Paulista (Unesp), onde preside o conselho editorial da coleção Geografia em Movimento, publicado pela Editora Expressão Popular.
Texto original publicado em: http://www.correiocidadania.com.br/content/view/1749/