A geografia que passa pela janela do meu carro é feita de traços monótonos e desoladores. Seguimos longa e melancólica estrada de asfalto, colorida de barro e poeira nos buracos de betume. Há poucas curvas, e apenas uma serra no trajeto. Cruzamos caminhões e picapes o tempo todo. Os postos de abastecimento são feios e sujos, e as cidades que surgem nas margens, pouco convidativas a uma visita. A vegetação é parca, constituída em sua maioria de pasto e lavouras de soja, salpicadas com esqueletos secos de grandes castanheiras que jazem nos campos. A variada fauna amazônica parece ter-se reduzido a espécimes de um gado zebuíno branco e sofrido.
A paisagem morta é o preço de um século de ocupação predatória dessa porção ocidental da Amazônia. Não nos choca, contudo. Desde que decidimos refazer o caminho aberto pelo marechal Cândido Mariano da Silva Rondon nos atuais estados de Mato Grosso e Rondônia, já admitia essa decepção com a realidade que encontro agora. Entre 1907 e 1915, Rondon chefiou a Comissão Construtora de Linhas Telegráficas de Mato Grosso e Amazonas, responsável por instalar, em diversas expedições, o telégrafo para aproximar uma Amazônia selvagem da capital do Brasil. Um século depois da epopéia de Rondon, uma previsível onda de colonização passou por cima de sua linha. Perdeu-se no tempo e na poeira dos campos desmatados a geografia "viva e característica" descrita pelo repórter da comissão, o médico e antropólogo Edgard Roquette Pinto, no célebre livro Rondônia, de 1917.
Seguir as picadas abertas na mata pelo marechal, hoje, é percorrer rodovias asfaltadas. Mais de 1,5 mil quilômetros separam Guajará-Mirim, em Rondônia, fronteira com a Bolívia, de Diamantino, Mato Grosso. Decidimos percorrer a distância no sentido oposto ao de Rondon, sempre em busca de algum antigo posto telegráfico - no total, foram instalados 25 pela comissão. Conseguimos encontrar 16 deles. Em alguns casos, não são nada mais que ruínas, às vezes sobrepostas por outras construções, em um patrimônio desintegrado da paisagem - apenas um posto, em Ji-Paraná, está conservado e serve de referência à história da cidade. Muitos operavam em conjunto com as estações da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, a "Ferrovia do Diabo", cuja obra na mesma época ceifou a vida de milhares de operários, boa parte de estrangeiros. Assim como o telégrafo, a ferrovia virou sucata.
Chegar a Rondônia na estiagem já é, por si, uma experiência pavorosa. A fumaça das queimadas é o cartão de visita e o sol impiedoso não conta mais com o anteparo das árvores. O vento quente confunde os sentidos. A sensação é de tontura. Onde antes imperava a floresta, eu agora vejo pasto. É difícil, assim, vislumbrar a bela descrição de Roquette Pinto, tão inspiradora sobre a expedição: "Margeando os grandes rios, ou adornando os mananciais, a mata, por toda parte, cresce e domina; conforta com sua sombra e seus frutos; espanta com suas formas".
No início do século 20, o telégrafo representava a chegada simbólica da civilização e do Estado aos confins da Amazônia. Guajará-Mirim foi o último posto da linha, destino final de sucessivas expedições que levaram anos e atravessaram, pela primeira vez, uma vasta região dominada por índios hostis, como os nhambiquaras e os cinta-largas, rios volumosos, áreas inóspitas de Cerrado e uma floresta que escondia muitos perigos em suas sombras.
Às margens do rio Mamoré, o porto que servia para escoar a seringa boliviana é agora ponto de partida para compras em Guayaramerim, do outro lado da fronteira, em que um uísque 12 anos custa 21 reais. O posto alfandegário tem modesta estrutura, mas representa sua função de regular o trânsito intenso entre os dois países. Perto dali, a antiga estação de trem chama atenção. O prédio abrigava o posto do telégrafo e hoje funciona como museu, mas a principal atração local é uma sucuri empalhada, com tamanho de fazer inveja em Hollywood. Do lado de fora jaz uma locomotiva, entregue à ferrugem.
Assim como marcava o fim da linha do telégrafo, Guajará era a última estação da Madeira-Mamoré, que começava em Porto Velho. A linha de trem, ou o que sobrou dela, me leva a uma cidade fantasma. Vila Murtinho tem as ruínas da estação, a igrejinha escondida pelo mato alto e a laje que restou da estrutura do telégrafo. Entre os raros moradores, encontro dona Regina. Chegou ainda criança, em 1954, e se lembra da cidade em plena atividade. Até que, em 1972, com a conclusão da BR-425, a 15 quilômetros dali, ela assistiu à mudança de seus vizinhos para a beira da estrada, onde nasceu outra cidade, já com a chegada de novos migrantes sulinos: Nova Mamoré. "Fico triste de ver a vila deserta, mas criei raiz e não saio mais daqui", diz ela.
Na verdade, o telégrafo traçou a rota da colonização da região, até que outra rodovia, a BR-364, consolidasse o processo na maior parte do caminho aberto por Rondon. Construída nos anos 1960 por Juscelino Kubitschek e asfaltada em 1983, sua função era unir povoações que surgiram décadas antes nos arredores dos postos telegráficos. Acabou servindo como porta de entrada aos migrantes, que transformaram de forma profunda o ambiente desbravado por Rondon. Hoje, com a floresta derrubada, o agronegócio dá as cartas na economia local. O ciclo da madeira acabou, e as fazendas lidam com a pecuária e, mais recentemente, com a soja. Basta respirar ou abrir os olhos para perceber o impacto ambiental da atividade. As intensas queimadas contaminam o ar e pintam o céu de um cinza-tédio. Vistas do alto, as estradas vicinais que partem perpendiculares à coluna central da BR-364 tomam a forma de espinha de peixe. E, aonde as estradinhas chegam, há devastação.
Se para o marechal Rondon a região era ocupada por povos indígenas com os quais o Brasil tinha de aprender a se relacionar, para os militares que governaram o país por mais de 20 anos, a partir de 1964, o objetivo era povoar uma enorme "área vazia", em campanhas movidas por lemas como "Terra sem homens para homens sem terra". Milhares de famílias de pequenos agricultores vieram do Sul incentivadas pelo Estado. Em Vilhena, Rondônia, o que mais vejo nas ruas são pessoas loiras de olhos azuis bebendo chimarrão embaixo de alguma sombra.
Em Ariquemes, a 185 quilômetros de Porto Velho, vive um veterano da região. Anésio Nunes, de 85 anos, veio da Bahia para trabalhar nos seringais durante a Segunda Guerra Mundial. Nunes costumava passar meses na mata sem ver vivalma, mas, ainda assim, pouco se servia do telégrafo. "Quem usava era o dono do seringal. O peão não falava com ninguém", diz. O ex-soldado da borracha é um diplomata ao relembrar a relação com os índios durante a labuta seringueira. "O nativo deixava sinais na floresta que eram uma provocação. Se você não mexesse neles, significava que era amigo. Se você tocasse, é porque queria briga." Os trabalhadores que vieram depois dele, sobretudo madeireiros e agricultores, não tiveram a mesma sofisticação, e os índios foram praticamente dizimados. Assim como Nunes, outros 57 mil brasileiros, a maioria nordestina, foram trabalhar nos seringais nessa época.
Ji-Paraná, no centro de Rondônia, é a única cidade que se preocupa em preservar sua história. O humilde Museu do Telégrafo funciona na casa que abrigou um posto telegráfico e tem um acervo de fotos e aparelhos daqueles tempos. Em Pimenta Bueno, por outro lado, o passado está vivo apenas na memória de Alzira Vieira de Souza, de 94 anos, viúva do ex-guarda-fios da cidade, Hermínio Vieira. O trabalho de seu marido era fazer a manutenção de 20 quilômetros da linha, mantendo a área livre de vegetação e trocando postes. Na década de 1930, lembra-se ela, "nem comércio havia na cidade. Sabão, sal, fósforos e farinha vinham de Ji-Paraná em canoa, numa jornada de oito dias." Ela não chegou a conhecer Rondon, mas na época pode ter visto por ali um sujeito de fala arrastada e óculos redondos, o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss. Sobre a região, ele escreveu em Tristes Trópicos: "O fio de telégrafo bambeava em postes apodrecidos. Por mais espantoso que pareça, a linha aumenta, mais que desmente, a solidão local".
Para entrar no Mato Grosso, atravessamos a serra do Norte, um obstáculo natural que custou quatro meses para ser vencido pela Comissão Rondon. De carro e na estrada de asfalto, cumprimos, em apenas uma hora, o mesmo percurso do sertanista. O sol que arde no para-brisa do carro cozinhava, na época, o sangue dos exaustos bois da comitiva. "O trabalho de escalar, fadigosamente, por essas escarpas abruptas para nos despenharmos, do lado oposto, em vales profundos, seria superior às forças dos nossos sertanejos, não fosse o entusiasmo que os animava", descreveu Rondon em seu diário.
O deslocamento era árduo. Rondon levava consigo frágeis equipamentos da equipe científica, entre eles um gravador de sons à base de discos de cera e um gramofone usado para tocar o Hino Nacional nos acampamentos. Toneladas precisavam ser transportadas sobre carros de bois e mulas: fios, postes, ferramentas e víveres. As dificuldades aumentavam à medida que os animais morriam ou eram abatidos para servirem de alimento. Em 1908, Rondon anotou: "Haviam-se esgotado todas as provisões, inclusive o sal. Nos últimos quatro meses, vivíamos de caça, mel e frutas. Deparamos, felizmente, com abundância de cocos, sem o que teríamos perecido. Passamos de uma feita 36 horas sem comer - conseguimos depois abater um veado, que devoramos, ficando a pele para os cães".
Em Vilhena, já na divisa com o Mato Grosso, tomamos uma sopa no trailer do Gaúcho e refletimos sobre o trajeto, tão duro antes, tão simples hoje. Imagino os homens de Rondon, desesperados de fome, jantando uma caça no fim de um dia - cada refeição devia ter o gosto da sobrevivência. O nome da cidade é uma cortesia de Rondon a Álvaro Vilhena, então diretor-geral dos Telégrafos. Essa é a fronteira da Floresta Amazônica, e daqui em diante o Cerrado domina, apesar de também ter virado pasto e soja.
Num certo trecho a BR-364 é interrompida, e o mais perto do trajeto da linha de Rondon que encontramos é a MT-235. Quando esteve aqui, o sertanista foi acolhido por índios parecis, que já haviam feito contato com colonos brasileiros. "Num dia de caminhada, atravessavam-se dez a 12 aldeias", escreveu Roquette Pinto. Mais para frente, no entanto, ele sofreria ataques dos nhambiquaras. "Em 22 de outubro, a expedição levou o acampamento até o rio. Nesse dia Rondon foi atacado. Por ventura, escapou de morrer, na ponta de uma flecha que agora figura no Museu Nacional", narrou o repórter da expedição. Viriam novos ataques a integrantes da tropa, alguns fatais. Todos, porém, sem revide. "A verdade é que os nhambiquaras vivem em paz conosco", escreveu depois Roquette.
Esses índios habitam hoje a terra indígena Tirecatinga, fronteira com a reserva Utiairiti, onde vivem os parecis. Nessas duas áreas havia três postos telegráficos. Nós conseguimos visitar apenas o segundo, que foi também uma missão jesuíta e agora não passa de ruínas. Daniel Matenho Cabixi, líder pareci, lembra-se do telégrafo em operação na época da missão, no fim dos anos 50. "Quem trabalhava no sistema eram as próprias famílias dos parecis", diz ele.
O contato de Rondon com as tribos pautou nova relação do Brasil com os índios daquele momento em diante, baseada no lema "Morrer se preciso for, matar nunca". Essa relação de respeito mútuo, aponta Nísia Trindade Lima, da Fundação Oswaldo Cruz, tem origem na doutrina positivista seguida pelo marechal. "Na essência, não haveria diferenças quanto à condição humana de qualquer das etnias. Preconizava-se o respeito às outras raças, sem impor nenhum projeto civilizatório", diz a pesquisadora. Violência, no entanto, era a praxe da época. E Rondon denunciava, em retornos eventuais ao Rio de Janeiro nessas mais de quatro décadas em que viveu nos sertões, as práticas de expedições punitivas de seringueiros e colonos contra os índios.
As reservas Tirecatinga e Utiariti são parte da rota dos caminhões que escoam grãos produzidos na região de Sapezal. Há um pedágio controlado pelos índios, o trânsito levanta uma poeira fina e qualquer ultrapassagem é arriscada. Atravessamos a reserva e observamos as cidades do caminho, mas quase sem notar presença indígena. Os nativos com quem Rondon estabeleceu uma relação pacífica em muitos casos foram diluídos pela chegada posterior de migrantes.
Diamantino, no Mato Grosso, a 160 quilômetros de Cuiabá, foi o ponto de partida da expedição de Rondon. Chegamos à cidade com os pulmões impregnados de poeira. Nada vemos nas ruas que faça referência ao marechal, e demoramos a encontrar alguém que possa falar algo sobre o posto de telégrafo. Taxistas sentados em seus carros na praça principal, bons conhecedores da geografia urbana, apontam o local do prédio, hoje uma casa particular. Vamos até lá, já preparados para nova decepção. Seus traços arquitetônicos rudimentares, as esquadrias de alumínio e o telhado de zinco repetem o padrão de uma casa qualquer da cidade. Batemos palma ao portão. Ninguém nos recebe. O cachorro late.
Na casa vizinha funciona uma lan house, que está repleta de adolescentes - todos concentrados em vencer adversários num joguinho eletrônico violento. A empreitada heroica de Rondon, que começou ali do lado, é como a própria linha do telégrafo: um fio perdido na história.
Publicado em 05/2009
National Geographic Brasil