Todos a Bordo ("Get on the Bus")
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Todos a Bordo ("Get on the Bus")



Fazia muito tempo que tentava me lembrar do nome de um filme. Como a sua história continuava relativamente viva em minha mente, nada que uma busca mais apurada não fosse o suficiente para elucidar a dúvida que tanto me atormentava.

Olha daqui, procura dali, primeiro cheguei na Marcha sobre Washington por Trabalho e Liberdade (March on Washington for Jobs and Freedom), ocorrida no dia 28 de agosto de 1963, quando o pastor protestante e ativista político Martin Luther King proferiu a célebre frase "I have a dream!" (em português, "Eu tenho um sonho!"), num discurso que ficou imortalizado como um símbolo da luta pelo reconhecimento dos direitos civis dos negros estadunidenses.

 Martin Luther King


A partir daí, foi só juntar as peças para chegar ao nome do diretor Spike Lee, um cineasta engajado que nunca deixou de abordar a temática racial em seus filmes, como você pode conferir aqui mesmo quando falei sobre Faça a Coisa Certa.

Spike Lee

Em vez de eu mesmo falar sobre Get on the Bus, uma produção de 1996, encontrei um interessante texto de José Geraldo Couto, publicado em 26 de janeiro de 1998 na Folha de S.Paulo Ilustrada, que vale muito mais do que qualquer sinopse. 


Lee dá voz aos negros

Em outubro de 1995, atendendo à convocação do líder Louis Farrakhan, centenas de milhares de negros norte-americanos concentraram-se em Washington, na manifestação de afirmação étnica conhecida como "Marcha do Milhão de Homens".
Um ano depois, Spike Lee realizou um longa-metragem inspirado no evento. Só que, em vez de focalizar os líderes e os discursos, resolveu fazer um "road movie".
Inédito nos cinemas brasileiros, "Todos a Bordo" ("Get on the Bus") acompanha um grupo de participantes da marcha, durante sua travessia da América desde Los Angeles até Washington.

O filme começa com o embarque no ônibus, em que os viajantes vão aos poucos conhecendo-se uns aos outros. A idéia, evidente, é fazer um painel da população negra norte-americana hoje.

Há um pai que traz o filho adolescente (e delinquente) algemado; um velho desempregado e alcoólatra; um aspirante a ator; um policial mulato claro; um casal de homossexuais; um religioso muçulmano que já foi membro de gangue; um estudante de cinema que registra tudo com uma câmera de vídeo etc.

Não demora muito para explodirem os primeiros conflitos, motivados por ressentimentos e preconceitos diversos: os gays são hostilizados por serem gays, o policial por ser filho de uma branca. Alguém ataca Farrakhan, outro defende Farrakhan, e por aí vai.

Há, ainda, os atritos "externos": com as mulheres negras, revoltadas por serem excluídas da marcha; com o chofer judeu, que procura em vão mostrar que também faz parte de um povo oprimido.

Spike Lee filma isso tudo simulando a linguagem da reportagem: muita câmera na mão, irregularidade na textura da imagem, diálogos enganosamente prosaicos.
Não admira que as imagens em vídeo captadas pelo estudante de cinema (chamado ironicamente de Spike Lee Jr. por alguém), inseridas aqui e ali, se encaixem tão naturalmente no conjunto. O filme todo é estruturado como se fosse um registro de viagem.

Há duas espécies de situação em que a algaravia do grupo dá lugar a algum sentido de comunidade: quando todos cantam, em júbilo, e quando alguém faz um discurso grave, do tipo "temos que nos unir como povo".

No primeiro caso, a tela é invadida por uma contagiante celebração da mais pura alegria de viver. No segundo, que denuncia o pendor de Spike Lee para o melodrama, o filme despenca no didático e programático, perdendo força.

Trata-se, enfim, das mesmas contradições que costumam marcar todo o cinema de Spike Lee, um cineasta que frequentemente deixa o panfletarismo comprometer seu enorme talento e suas poderosas intuições.






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