Taís Sandrim JuliãO término da Guerra Fria, marcado pela desintegração da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), impôs uma nova configuração na política internacional. O impacto foi sentido principalmente pelos Estados Unidos ? que assumiram desde então a hegemonia global ?, mas também pela Europa e Ásia, que se viram frente a um novo cenário mundial no qual a bipolaridade perdia seu sentido político-estratégico.
De fato, com o nascimento da Rússia como entidade política, incapaz de recuperar seu papel de protagonista no sistema internacional no curto e no médio prazo, a configuração européia e asiática da qual o país faz parte sofreu transformações significativas no que se refere à correlação de forças da região.
De potência na ordem bipolar, a Rússia passou a integrar na ótica da política internacional o grupo de Estados que buscam seu espaço por meio de estratégias compartilhadas e coerentes com suas capacidades e seu potencial de atuação no sistema internacional. Assim, o perfil de atuação nos fóruns multilaterais deste país diferenciou-se brutalmente ao dos Estados Unidos e aproximou-se cada vez mais ao de Estados como Brasil, China e Índia, que incorporam o epíteto de países emergentes.
Cumpre questionar, nesse contexto, se fim do cenário de bipolaridade e a percepção de estratégias de convergências de estratégias de inserção internacional atribuem à Moscou uma nova posição ao lado dos emergentes.
Dentre os fatores que podem oferecer respostas afirmativas a respeito deste processo de reorganização da ordem internacional e do novo lugar da Rússia no mundo, podemos destacar elementos político-militares e econômico?sociais à luz de uma abordagem histórica.
Com relação ao elemento político, é possível observarmos duas dinâmicas que se projetam tanto em nível doméstico quanto externo. Politicamente, a Rússia apresenta um dilema, pois quase duas décadas após a extinção do regime socialista, não podemos afirmar se seu futuro será democrático e liberal nos moldes ocidentalmente concebidos. Determinadas características do país indicam uma demanda e, porque não, uma vocação democrática, como por exemplo, a pluralidade étnica e o passado comunitarista da sociedade russa, elementos esses evidentes na história política do país. Nesse sentido, uma Rússia capitalista democrática não se aproximará do perfil dos Estados Unidos, pois estão incutidos na sua identidade estatal traços comunitários que construíram o imaginário da nação.
Militarmente, a Rússia tem um passado não tão distante que lhe confere ainda hoje inegável respeito e centralidade no tema do desarmamento. A participação ativa e decisiva em guerras mundiais; a manutenção de um território vasto ? dotado de riquezas minerais como ferro e petróleo ? e em posição geoestratégica ? próxima a países-chave da Ásia, como China, Índia, Paquistão, Japão, Coréia do Norte; e sua infra-estrutura industrial ligada à tecnologia militar e espacial, além do domínio de tecnologia nuclear; e o assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas.
A Rússia permanece realizando e fortalecendo alianças com países que são considerados pela comunidade internacional ? especialmente daqueles Estados aliados dos Estados Unidos -, foco de tensões sob o prisma da segurança internacional, tais como o Irã. Desde 2001, o país tem investido em uma aliança geoestratégica por meio da Organização para a Cooperação de Xangai, que reúne países-chave na região, como China, Cazaquistão, Uzbequistão, Tadjiquistão e Quirguistão.
Somado a isso, a ingerência russa em conflitos ocorridos recentemente na região da Ossétia do Sul nos fazem rememorar tempos em que a Rússia era uma entre as duas grandes potências militares da segunda metade do século XX. Nesse sentido, a Rússia ainda seria um ator relevante com ares de potência como a China, e não um país emergente como o Brasil, cujo perfil militar é relativamente baixo.
Quanto aos fatores econômicos, a reorganização da sociedade russa ? que já não necessita mais focar seu planejamento no atendimento das diretrizes socialistas e na corrida armamentista de tempos de Guerra Fria -, possibilitou uma nova dinâmica de crescimento, pautada em elementos como a indústria pesada, inserindo o país em uma nova posição no comércio internacional. A Rússia vivia até o ano passado a retomada de seu crescimento, pautado não somente nas tradicionais exportações de petróleo e gás natural, mas também no incremento industrial e índices macroeconômicos favoráveis.
Todavia, as recentes oscilações no mercado financeiro mundial relacionadas à crise do capitalismo global incidiram no processo de recuperação da economia russa. Isso se deve, por um lado, ao vínculo crescente de sua economia ao mercado e ao comércio internacionais e, por outro, as dinâmicas econômicas internas relacionadas a problemas como inflação e desemprego. Mas é importante destacar que os analistas têm sugerido que os países emergentes ? entre eles a Rússia -, ao contrário daqueles que possuem sua economia fortemente vinculada aos Estados Unidos, serão menos afetados pela crise mundial.
Acrescido a estes aspectos domésticos de reorganização econômica e os impactos da crise, a Rússia tem igualmente sido influenciada pela proximidade estratégica com a União Européia e seus países-membros recém-ingressos do leste, que ainda mantêm fortes relações com a nação russa. O histórico dos períodos pós-guerras mundiais e as transformações das sociedades européias, com o continente unificado e inexistência da ameaça comunista, coloca a Rússia como um ator no subsistema europeu que não deve ser negligenciado.
Diante desse cenário, o país emerge como parceiro importante cuja inserção internacional é marcada por uma nova abordagem, que não exige vinculações políticas ou compromissos ideológicos. Atualizadas sua estratégia e dinâmica em suas relações comerciais internacionais, a Rússia vai se libertando paulatinamente da visão de ?país vencido? no pós Guerra Fria.
A participação em coalizões representa um dos elementos substantivos para compreendermos de que modo a Rússia está inserida na lógica dos países emergentes. Nos tempos de URSS, a celebração de alianças e parcerias comerciais com o país socialista possuía um significado adicional, de caráter político: significava um posicionamento frente à dinâmica bipolar.
Contemporaneamente, dedica-se ao engajamento com países com os quais se identifica em termos de reivindicação de espaços econômicos e de participação nas decisões internacionais, como é o caso dos BRIC ? Brasil, Rússia, Índia, China; porém, sem, com isso, abrir mão de foros privilegiados entre as potências centrais. Este grupo de países têm se apresentado no cenário internacional como um espaço de diálogo alternativo e, até certo ponto, complementar aos grupos tradicionais como G8 e G20.
A primeira reunião de cúpula presidencial foi realizada dia 16 de junho deste ano, na cidade de Ecaterimburgo, parte asiática da Rússia. Este foi um passo importante para o grupo, que até então vinha dialogando e negociando de modo informal. A agenda abarcou temas de política internacional e de interesse nacional dos integrantes, tais como a crise econômica mundial e as reformas das instituições financeiras, a mudança climática, segurança alimentar e energética e o papel do G20. A iniciativa, além de ter antecedido a reunião do G8 recém-concluída em julho e a próxima reunião do G20 marcada para setembro, foi igualmente significativa porque foi realizada concomitantemente ao encontro da Organização de Cooperação de Xangai.
Estes eventos podem ser analisados, à luz das estratégias russas enquanto país emergente, como uma importante demonstração de seus objetivos e de suas ambições na nova ordem internacional. Com efeito, a realização de parcerias com países que não são considerados como potências? exceto a China -, aponta, por um lado, a capacidade limitada da Rússia projetar poder de forma autônoma como nos tempos da Guerra Fria, necessitando, portanto, compartilhar espaços com determinados países percebidos como estratégicos.
Por outro, sugere uma interessante estratégia de ação na atual política internacional, em que a hegemonia norte-americana vê-se obrigada a ceder poder em virtude da complexidade das dinâmicas que interferem na lógica do sistema. Desta forma, busca-se uma posição assertiva e de influência por meio de estratégias típicas de países emergentes a exemplo do mecanismo das coalizões, que recolocam o país no quadro dos Estados relevantes nas decisões internacionais sem a necessidade de arcar com os custos elevados que envolvem o status de potência, lição esta aprendida no passado.
A Rússia busca gradativamente uma posição proeminente no cenário internacional, apoiando-se nas políticas domésticas de estabilização política e econômica, e, externamente, fazendo uso de uma espécie de estratégia combinada, em que os conceitos de autonomia e parceria não são excludentes, mas sim complementares.
Dotada de petróleo e gás natural, e historicamente distantes dos Estados Unidos, a Rússia caminha de forma independente, realizando opções estratégicas de relacionamento com a Europa, países do Oriente Médio e demais países emergentes. Apesar de seu peso militar significativo, este não é suficiente para colocá-la como uma potência em termos fáticos, mas sim circunscrevê-la apenas no plano de potência militar, e, portanto, ator decisivo nos desafios da segurança internacional.
Em síntese, podemos dizer que a Rússia hoje apresenta perfil de país emergente, principalmente quando observamos suas estratégias de atuação no ambiente internacional. Porém, é importante destacar que, assim como os demais países integrantes desse grupo, possui suas especificidades que balizam suas opções internacionais. Por esse motivo, a análise de seu desempenho internacional deve levar em consideração este histórico, e de que forma ele incide na atualidade.
Taís Sandrim Julião é Mestranda em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília ? UnB (
[email protected]).
Boletim Meridiano 47
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