Geografia
PT meteu a mão até na Pesquisa de Orçamentos Familiares
O aparelhamento do Estado pelos governos petistas manifesta-se não apenas na ocupação de milhares de cargos públicos por militantes do PT e sindicalistas pelegos, mas também pela contaminação das pesquisas realizadas por órgãos públicos com propaganda governamental. Um bom exemplo disso é a Pesquisa de Orçamentos Familiares - POF, do IBGE. A edição da pesquisa publicada em 2004, segundo ano do governo Lula, ainda manteve o perfil estritamente técnico que era a marca do Instituto até o final do governo FHC. A análise de resultados dessa pesquisa, com dados de estado nutricional para 2002-2003, comparados com os de pesquisas do mesmo gênero para os anos de 1975 e 1989, restringia-se a expor unicamente as conclusões derivadas da descrição dos fenômenos mensurados pelos instrumentos de pesquisa. Mas, pelas razões que já expliquei aqui, o governo Lula, inconformado com os resultados, decidiu meter a mão nas pesquisas sobre estado nutricional.
O resultado disso é que, na análise de resultados divulgada sobre a POF 2008-2009, os técnicos da instituição avançaram o sinal e embutiram propaganda dos projetos e ações do governo petista no texto! Vejamos esta passagem:
A Estratégia Global em Alimentação, Atividade Física e Saúde, aprovada em 2004 pela Assembléia Mundial da Saúde, com o firme apoio do governo brasileiro, chama a atenção para o aumento explosivo da obesidade e sobre o impacto desse aumento na incidência de várias doenças crônicas (como diabetes, doenças do coração e certos tipos de câncer), na expectativa de vida da população e nos custos dos serviços de saúde (IBGE, 2010, localização 77).
Independentemente de qualquer juízo positivo ou negativo que possamos fazer do diagnóstico e das propostas que constam da tal Estratégia da ONU - eu sou contra -, o fato é que o relatório da POF se transformou num instrumento de propaganda governamental, o que é incompatível com as funções que o IBGE deve exercer como órgão do Estado, o mesmo valendo para seus quadros técnicos. As medidas antropométricas permitem identificar problemas de desnutrição, de excesso de peso e de obesidade, mas os técnicos responsáveis pela análise das informações coletadas sobre tais fenômenos não têm nada que se posicionar, em documentos oficiais, sobre as medidas políticas que devem ou não ser tomadas para enfrentá-los. Eles podem até fazer isso em entrevistas à imprensa e em textos acadêmicos assinados que tenham objetivos explicativos mais amplos que o da pesquisa, mas jamais transformar o documento oficial de análise de resultados em propaganda do governo. Mas o pior vem num parágrafo pouco adiante:
A Política Nacional de Alimentação e Nutrição - PNAN, ao direcionar esforços para a construção de uma agenda integrada da nutrição, não deixa dúvidas quanto à gravidade do problema representado pela obesidade em nosso meio. A PNAN reconhece, também, a natureza complexa da obesidade e define um conjunto de ações, no âmbito da Saúde e de outros setores, para assegurar ambientes propícios a padrões saudáveis de alimentação e nutrição para todos. Passos importantes nessa direção foram dados recentemente, como a inclusão de metas nacionais para a redução da obesidade no Plano Nacional de Saúde, a aprovação de diretrizes nacionais para alimentação saudável, o repasse de recursos federais para financiamento de ações específicas de promoção de alimentação saudável e de atividade física nos municípios, e a resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária que regulamenta a publicidade de alimentos não saudáveis. No âmbito intersetorial, destaca-se a adoção de políticas de segurança alimentar e nutricional bem como a integração do Programa Nacional de Alimentação Escolar com a produção local de alimentos e a agricultura familiar, favorecendo a oferta de frutas e hortaliças nas escolas e comunidades (IBGE, 2010, localização 77).
Se fazer propaganda das ações de um governo já fere o espírito republicano que deve reger a atuação do IBGE, pior ainda é quando as referidas ações nem sequer encontram justificativa nos resultados da pesquisa! É o que se vê no final do parágrafo, quando é feito o elogio de medidas que visam privilegiar a produção local de alimentos e a agricultura familiar como fornecedores de merenda escolar. Ora, as medidas antropométricas e as informações sobre aquisição de alimentos dentro e fora do domicílio não são capazes de avaliar se o fornecimento local e a agricultura familiar têm qualquer relação que seja com alimentação mais saudável, uma vez que tais informações se referem apenas ao consumidor!
Tais ações do governo derivam apenas de duas visões ideológicas que, embora alcancem larga influência política, e também nos estudos de sociologia e geografia rural, são completamente falsas. A primeira delas é a tolice de que as grandes empresas do setor agroalimentar não se preocupam em atender às "reais necessidades" da população porque visam gerar lucros, como se fosse possível alcançar esse objetivo, numa economia competitiva, sem atender às expectativas do consumidor. Já a segunda é o mito de que haveria uma "lógica da produção camponesa" segundo a qual o dito "camponês" tenderia a produzir alimentos de qualidade e de forma ambientalmente sustentável porque, em vez de lucro, visa reproduzir seu modo de vida. Já publiquei alguns textos neste blog que desmentem afirmações desse tipo (ver abaixo) e tratei detalhadamente da falsa dicotomia agronegócio versus agricultura familiar em meu último livro (Diniz Filho, 2013).
E isso sem mencionar o fato de que a tal regulamentação da publicidade de alimentos não saudáveis pode ter efeitos significativos de restrição das fontes de captação de recursos por parte da imprensa independente, ou seja, os jornais, revistas e sites de notícias cuja independência em relação ao Estado e ao poder econômico é garantida pela multiplicidade de seus anunciantes. Como é sabido, as empresas de alimentos estão entre os maiores anunciantes.
Postagens relacionadas:
- É mentira que a agricultura familiar produz a maior parte do alimento consumido no Brasil
- Trabalho infantil na agricultura familiar não dá manchete
- A geografia rural crítica é mais anacrônica do que a geografia tradicional
- - - - - - - - - -
DINIZ FILHO, L. L. Por uma crítica da geografia crítica. Ponta Grossa: Editora da UEPG, 2013.
IBGE. Pesquisa de orçamentos familiares 2008-2009: antropometria e estado nutricional de crianças, adolescentes e adultos no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 2010.
-
Questão De Geografia Agrária - Agricultura Familiar
Questão de Geografia resolvida - Coluni UFV 2012 - Agricultura familiar
Leia os textos abaixo: A agricultura familiar tem uma participação muito representativa na agricultura brasileira, correspondendo a 84,4% das propriedades rurais...
-
Da Fome à Obesidade
O Brasil começa a viver o drama de países ricos. Com maior consumo de alimentos industrializados ricos em sódio, açúcares e gorduras, mais da metade da população apresenta sobrepeso ou é obesa. As classes C e D são as maiores vítimas. Por Adriana...
-
Capitalismo é A Melhor Solução Para A Fome, Mas Os Marxistas Não Querem Ver
A geografia tradicional é sempre muito acusada, inclusive pelos geocríticos, de ser puramente empirista, descritivista. Sendo assim, os geógrafos críticos, supostamente, deveriam interpretar as informações empíricas com base num referencial teórico-metodológico...
-
É Mentira Que A Agricultura Familiar Produz A Maior Parte Do Alimento Consumido No Brasil
Comentei em um post anterior sobre as mentiras que a geografia vem divulgando em artigos científicos, livros didáticos e salas de aula nas últimas décadas. A primeira delas está na afirmação de que as grandes propriedades só produzem commodities...
-
Vesentini Cometeu Erro Grosseiro Ao Tratar Da Fome
Os livros didáticos de geografia adoram falar sobre a "questão da fome", e as obras de Vesentini não fogem à regra. O problema é que, como já é sabido desde a publicação da Pesquisa de Orçamentos Familiares 2002-2003 - POF, a desnutrição deixou...
Geografia