O desafio sul-americano, por Samuel Pinheiro Guimarães
Geografia

O desafio sul-americano, por Samuel Pinheiro Guimarães



Carta Maior, 30/08/2012

Samuel Pinheiro Guimarães: O desafio sul-americano

O principal desafio da política externa brasileira no século XXI será a América do Sul. No processo de construção da integração América do Sul é preciso vencer o pessimismo interessado daqueles que, externa e internamente, não acreditam no potencial nem do Brasil, nem do Mercosul, nem da América do Sul, e que preferem sonhar com a volta ao regaço do colonialismo, até recentemente sob as roupagem tentadoras, agora meio esfrangalhadas, da globalização equânime, do livre comércio e da auto regulação dos mercados. O artigo é de Samuel Pinheiro Guimarães.

Samuel Pinheiro Guimarães - Especial para Carta Maior

1. O principal desafio da política externa brasileira no século XXI será a América do Sul.

2. A América Central e o Caribe, a América do Norte, a Europa, a África e a Ásia serão áreas de grande interesse, mas nenhuma delas apresenta para a política externa brasileira a mesma complexidade do que a América do Sul.

3. As relações do Brasil com cada país da América do Sul são fundamentais tanto bilateralmente como para a defesa dos interesses do país na esfera multilateral, em suas dimensões política, econômica e militar.

4. A característica essencial dessas relações são as assimetrias de ordem econômica, política e militar entre o Brasil e cada um de seus nove vizinhos de fronteira e os outros dois vizinhos de região, o Chile e o Equador.

5. O território brasileiro é cerca de três vezes o território da Argentina, que é o segundo maior da América do Sul, com seus quase três milhões de Km² o que naturalmente inclui as Ilhas Malvinas, Sandwich e Geórgia do Sul, ocupadas ilegalmente pela Inglaterra. A extraordinária extensão do território brasileiro, o quinto maior do mundo, significa que a possibilidade de o Brasil deter uma gama mais diversificada de recursos minerais assim como a de ter uma produção agrícola maior e mais variada é maior, em princípio, o que, aliás, já ocorre, do que a de seus vizinhos.

6. A população brasileira é quase cinco vezes a da Argentina (41 milhões) ou quatro vezes a da Colômbia (47 milhões), as duas maiores depois do Brasil, mas chega a ser 60 vezes a do Uruguai, com seus 3,3 milhões de habitantes. Quanto maior a população, maior a possibilidade de, superadas as extraordinárias desigualdades de renda, ter um mercado interno maior e de assim lograr construir uma economia industrial mais sofisticada e com um número de setores mais amplo.

7. Por esta razão, o Brasil, em comparação com seus vizinhos, logrou estruturar uma economia industrial e de serviços muito maior, mais sofisticada e diversificada.

8. No campo político, o Brasil soube nos últimos anos estreitar suas relações com os países africanos da Costa Ocidental, com os países árabes e ainda que em menor escala com os países asiáticos, exceto no caso especial da China, com os países chamados do Sul, no que o Presidente Lula e o Chanceler Celso Amorim chamaram de uma nova geografia econômica e política mundial.

9. No caso da África, o fato de ser o Brasil o segundo maior país do mundo em população negra; de não haver legislação de natureza discriminatória ainda que haja preconceito, porém cada vez menor; de estarem sendo executadas firmes políticas de igualdade racial; de serem implementadas amplas políticas de combate à pobreza; de ter tido relativo êxito em seu processo de industrialização; de existirem semelhanças de desafios sociais, tais como na educação, na saúde, na pobreza, na habitação e do êxito de vários programas brasileiros nessas áreas; de existirem desafios econômicos semelhantes, como na agricultura de cerrado e na construção da infraestrutura; de o Brasil desenvolver políticas de cooperação técnica e financeira sem imposição de condicionalidades, como faziam as potências coloniais e fazem as neocoloniais, tudo isto explica o êxito da política brasileira com a África.

10. Com o Oriente Próximo, o equilíbrio do Brasil em relação à situação na Palestina; a defesa de uma solução pacífica para a questão do Iraque antes da eclosão da Segunda Guerra do Golfo; a cooperação técnica com a Autoridade Palestina; a iniciativa com a Turquia junto ao Irã, para permitir o encaminhamento de uma solução pacífica para as pressões americanas (e dos seus coadjuvantes ocidentais) sobre o programa nuclear iraniano, aliás, nos termos de uma carta do Presidente Obama em que ele detalhava as exigências ocidentais, tudo isto são fatores que tem contribuído para a expansão das relações comerciais e políticas do Brasil com os países do Oriente Próximo.

11. Este esforço de diversificar a política externa brasileira ocorreu sem que fossem abandonados ou prejudicados os laços tradicionais, especialmente econômicos, com os países da Europa Ocidental e com os Estados Unidos.

12. As políticas domésticas de incorporação de grandes massas da população à economia moderna e ao mercado de consumo, tais como Bolsa Família, o Luz para Todos, o crédito popular, e os programas de construção da infraestrutura e o tratamento correto ao capital estrangeiro tiveram seu papel.

13. Assim, a equidistância e independência serena da política externa brasileira, a estabilidade democrática, o equilíbrio macroeconômico, os superávits do comércio exterior, as condições do mercado interno brasileiro e seu potencial fizeram com que, nos últimos anos, o influxo de capitais estrangeiros, mesmo depois da crise, venha sendo excepcional, em especial aquele proveniente dos Estados Unidos e da Europa, e em tempos mais recentes, da China.

14. Nem as relações com os Estados Unidos e com a Europa, alvejados pela crise que não dá sinais de fim; nem todo o extraordinário potencial das relações com a África; nem a complexidade da situação do Oriente Próximo, com seu potencial explosivo; nem as relações com a Ásia e com o seu centro dinâmico a China, em sua crescente disputa com os Estados Unidos, nada disto poderá trazer para o Brasil os mesmos desafios que traz a América do Sul.

15. O desafio da política externa brasileira estará na América do Sul.

16. Em um mundo crescentemente multipolar, em que a ação americana é onipresente e poderosa, e no qual as negociações internacionais tendem a ter cada vez maior importância não só para definir as relações entre os Estados mas para fixar parâmetros para políticas domésticas, é de grande relevância a constituição de um bloco de Estados na América do Sul, tanto para aqueles de menor como para aqueles de maior dimensão, como a Argentina e o Brasil. Nas negociações internacionais a cada Estado corresponde um voto seja ele um micro Estado do Pacífico seja ele a maior Potência do mundo. A título de exemplo, nas recentes eleições para Diretor Geral da FAO o brasileiro José Graziano da Silva foi eleito por quatro votos... Os Estados de menor dimensão, se isolados, se encontram numa posição de maior fragilidade na defesa de seus interesses ou tendem a ser absorvidos por blocos maiores liderados por países desenvolvidos onde seus interesses se diluem. Mas o mesmo ocorre com os países de maior dimensão. À própria Alemanha interessa a existência e a participação na União Européia. Para o Brasil a construção de um bloco sul-americano é um objetivo estratégico mais do que fundamental: é essencial. Muitos são os desafios a enfrentar para tornar realidade este projeto.

17. As dimensões da economia brasileira, a variedade de sua produção exportável, a dimensão de suas empresas faz com que o Brasil tenda a ter um superávit comercial significativo e crônico com praticamente cada país da América do Sul. Nossa produção industrial é mais diversificada e nossa produção agrícola é semelhante à dos países vizinhos e, quando menos competitiva, é capaz de articular mecanismos de defesa que impedem ou dificultam a concorrência externa.

18. As dimensões da economia brasileira fazem com que as empresas brasileiras sejam muito maiores do que as empresas dos países vizinhos.

19. Devido às limitações do mercado interno brasileiro, decorrentes da concentração de renda, as empresas brasileiras de capital nacional procuram expandir suas operações para o exterior, natural e inicialmente para os países vizinhos.

20. Essas empresas brasileiras tendem a adquirir empresas locais existentes, o que configura um processo de desnacionalização, ou, quando vem a construir capacidade instalada nova, tendem a ser produtoras concorrentes das empresas locais.

21. À medida que empresas brasileiras assumem um papel relevante em um determinado setor, sua atividade passa a ser vital para a economia do país vizinho onde estão instaladas.

22. Assim, quando o governo local edita leis de regulamentação do setor onde atuam essas empresas e elas consideram, com ou sem razão, que seus interesses (o que significa, em geral, os seus lucros) estão sendo atingidos passam elas a ?agir? junto ao governo local e, em caso de insucesso, passam a procurar a ajuda do governo de seu país de origem, isto é do Brasil.

23. Estas situações tenderão naturalmente a ocorrer e, certamente, o Brasil não dispõe dos recursos de poder para impor aos países vizinhos a sua (isto é, dessas empresas) vontade para modificar a legislação do país onde se encontram e assim, não só por razões de princípio como de conveniência, o Brasil terá de se aferrar ao princípio de não intervenção nos assuntos internos de outros países, como determina sua Constituição, para evitar receber a pecha de imperialista ou, o que é pior, de subimperialista.

24. As relações entre os países vizinhos e o Brasil tenderão a se tornar mais complexas à medida que se ampliem os fluxos migratórios desses países para o Brasil em decorrência da magnitude do mercado brasileiro, de dificuldades econômicas e políticas nos países vizinhos, do diferencial das taxas de crescimento econômico e de maiores oportunidades de emprego.

25. As relações do Brasil com os países vizinhos se tornaram ainda mais complexas devido à política exterior norte americana para a América do Sul, em especial em período de grave e prolongada crise econômica e de primórdios da longa disputa pela hegemonia com a China.

26. Os Estados Unidos, na execução de sua política externa para a região, continuarão a procurar celebrar acordos de livre comércio com os países da região e nesta estratégia desintegrar o Mercosul e desestabilizar os governos da região que se opõem mais frontalmente às políticas americanas tais como a Venezuela, o Equador e a Bolivia. Ademais, estimulam projetos, como a Aliança do Pacífico, de iniciativa mexicana que envolve a Colômbia, o Chile e o Peru, que se propõem a ser um contraponto ao Mercosul.

27. A China, por sua vez, em sua estratégia de controlar o acesso a recursos naturais e em abrir mercados para suas exportações procurava fazer algo semelhante ao propor e negociar acordos de livre comércio com os países da América do Sul como fez agora aos países do Mercosul.

28. Tanto a ação dos Estados Unidos como a da China afetam o que deve ser o principal objetivo estratégico da política exterior brasileira: a construção de um polo econômico e político na América do Sul.

29. Os Estados Unidos, através de sua política de expansão comercial que tem como um de seus instrumentos a desvalorização do dólar pela quantitative easing (ampliação da oferta de dólares) e a China, pela sua política de exportação de manufaturados, afetam a economia brasileira gerando um processo de desindustrialização que, por sua vez, atinge os laços de comércio entre os países do Mercosul e da América do Sul, cuja base é o comércio de manufaturas.

30. Por outro lado, cerca de 90% do comércio intra Mercosul é o comércio entre Brasil e Argentina e cerca de 40 a 50% do comércio entre Brasil e Argentina corresponde a automóveis e autopeças, sendo um comércio entre megaempresas multinacionais, organizado pelos Estados, de acordo com as normas do acordo automotivo.

31. Ademais, a participação das megaempresas multinacionais nas economias e no comércio exterior nos países do Mercosul é notável. Mesmo a exportação de produtos agrícolas (commodities) é controlada por megaempresas multinacionais como a Dreyfus, a Cargill, a Bunge. O comércio intra Mercosul é em grande parte um comércio organizado pelas empresas multinacionais, de acordo com seu planejamento global de produção e de comércio.

32. Assim, caberia ao Brasil como maior economia do Mercosul e da América do Sul, em conjunto com a Argentina, fortalecer sua indústria e a dos demais países do Mercosul através de uma política de comércio organizado, sem insistir no mito de um comércio livre que, na realidade, não existe já que é organizado de fato por multinacionais; fortalecer os atrativos do Mercosul para os países menores já integrantes ou candidatos ao Mercosul através da ampliação do Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul - FOCEM; criar linhas de créditos que estimulassem as empresas brasileiras a fazer investimentos na América do Sul e no Mercosul para ampliar a capacidade instalada nos países e não para adquirir empresas existentes; reforçar de forma significativa os programas de cooperação técnica, inclusive na área militar; instalar unidades de instituições brasileiras de pesquisa como a Embrapa, a Fiocruz, o IPEA e outras nos países da América do Sul; e finalmente fortalecer os centros de pesquisas nacionais desses países.

33. Neste processo, de construção da América do Sul é preciso vencer o pessimismo interessado daqueles que, externa e internamente, não acreditam no potencial nem do Brasil, nem do Mercosul, nem da América do Sul, e que preferem sonhar com a volta ao regaço do colonialismo, até recentemente sob as roupagem tentadoras, agora meio esfrangalhadas, da globalização equânime, do livre comércio e da auto regulação dos mercados.
 
 
Fonte: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=20802






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