Nós e os britânicos
Geografia

Nós e os britânicos


A principal diferença entre o sistema eleitoral brasileiro e o britânico é que o eleitor britânico pelo menos é consultado a respeito de como prefere votar

Antonio Lassance

Nem tudo está oquei no UK

O Brasil é uma República Federativa. O Reino Unido é uma monarquia parlamentar unitária. O Brasil usa o sistema proporcional e de coligações para eleger parlamentares. Os britânicos não fazem ideia do que isso seja. Seu sistema é majoritário e de eleição por distritos (650 ao todo).

A principal vantagem do sistema eleitoral britânico é o fato de ser simples. O eleitor saber exatamente que seu voto vale naquele distrito e que o eleito será quem for o mais votado individualmente.

O processo eleitoral, porém, é arcaico. Os eleitores votam em cédulas de papel, depositam o voto em uma urna que não é eletrônica e a apuração é feita no braço por pessoas que conferem voto a voto.

De vez em quando, as filas para votar são tão demoradas que, quando se encerra o horário, as pessoas que estavam do meio para o final veem as portas das seções eleitorais serem fechadas antes de chegar a sua vez. Depois de horas no frio e na chuva, voltam para casa sem terem conseguido votar.

Outro problema: quando termina a eleição, nem sempre se sabe quem governará o Reino Unido. Um partido precisa ter maioria suficiente para escolher o primeiro-ministro e formar um governo, ou deverá recorrer a uma coligação com um partido que cuspiu cobras e lagartos contra esse que agora lhe convida para montar um gabinete.

Yes, nós também temos distorções

No Brasil, não apenas os partidos, mas os especialistas se contradizem sobre os remédios a serem adotados para melhorar a qualidade da representação.

Diante de tantas incertezas e desavenças, o debate tende ao exagero. Algumas mudanças são defendidas como capazes de operar milagres, enquanto outras são vistas como o fim do mundo.

Debater apenas as regras eleitorais de votação (como se vota e como se define quem são os eleitos) é apenas tratar da ponta desse iceberg que é a política, sem descuidar da importância da ponta de qualquer iceberg.

As eleições britânicas mostraram uma clara distorção. Os conservadores formaram uma folgada maioria no Parlamento, mesmo não tendo maioria dos votos populares. Assim foi porque a regra dos britânicos é dada pela maioria dos distritos.

Não adianta criticá-los por isso com um raciocínio de sistema proporcional. No passado, antes do sistema de dois turnos, elegíamos prefeitos em um único turno mesmo que eles não tivessem a metade mais um dos votos. E é ainda assim para todas as cidades com menos de 200 mil habitantes.

São exemplos de supostas distorções, mas não existe sistema eleitoral sem risco de distorção. O Brasil tem uma regra da representação congressual, dada pelo fato de que somos um país federalista, que alguns podem considerar uma distorção. É e não é.

Estados pequenos e o Distrito Federal têm, no mínimo, oito deputados e, no Senado, qualquer um tem três senadores igualmente, independentemente da quantidade de eleitores de cada uma dessas unidades da Federação (UFs).

Há quem alerte: "o sistema distrital joga votos fora". Calma, gente. Se é assim, nós também fazemos isso. Nossa Constituição diz, em seu artigo 45, § 1º, que nenhuma unidade da Federação terá menos de oito ou mais de setenta Deputados.

Quando limitamos o mínimo e o máximo de deputados que uma UF pode ter na Câmara, distorcemos a representação e jogamos fora o voto de um monte de gente.

Isso se chama federalismo e democracia. Chama-se federalismo porque respeita o princípio de que unidades menores devem ter um mínimo, e as gigantes, um máximo, justamente para evitar uma distorção que torne os pequenos irrelevantes, e os grandes, dominadores.

Isso também se chama democracia, que não é só governo da maioria, mas respeito às minorias. A ideia de que o voto de cada pessoa é igual não funciona nem aqui, nem em democracia alguma. Sempre haverá algum tipo de distorção - o importante é que se saiba de que tipo. Cada sistema escolhe a distorção que considera mais positiva e menos prejudicial.

Lendas urbanas

Em 2002, o médico Enéas Carneiro, de um partido chamado Prona, de voz rascante e discurso raivoso, recebeu 1,55 milhão de votos. Nosso sistema deu ao fenômeno Enéas o prêmio de levar consigo mais cinco correligionários raquíticos de voto e, portanto, nada representativos.

Os menos votados do PRONA tiveram, um deles, menos de 400 votos, e outro, apenas míseros 275 votos. Ainda bem que o estado de São Paulo só pode ter 70 deputados, ou o estrago seria pior. Enéas levaria mais gente sem voto em sua cauda meteórica.

O sistema majoritário (distrital) personaliza a eleição? E o proporcional, não? O que o "exemplo" Enéas nos mostra? A força de um partido? Convenhamos.

O voto distrital aumenta o peso do poder econômico nas eleições? Mais do que o nosso sistema proporcional? Comparem os gastos de campanha no Reino Unido e no Brasil.

Sejamos realistas e busquemos argumentos mais robustos. O poder econômico não se importa se o sistema é proporcional ou majoritário. O poder econômico e seus candidatos arrumam um jeito e riem dessas filigranas.

O voto distrital vai tornar o eleito mais próximo do cidadão? Não necessariamente. A depender de outros aspectos, é improvável. Não é o tipo de sistema eleitoral que torna o eleito mais próximo do cidadão. Prefeitos de alguns municípios pequenos são eleitos por voto majoritário e muitas vezes nem moram lá. Governam morando na capital.

Os defensores do sistema proporcional dizem que o sistema distrital majoritário promove a eleição de celebridades. E o sistema proporcional, não? Clodovil, Tiririca, Romário, Popó, Marta Suplicy (que ganhou fama no programa TV Mulher, da Globo, sendo uma espécie de Ana Maria Braga para assuntos de sexualidade) e toda uma legião de futebolistas, radialistas e apresentadores de programas de tevê são o quê? Vamos falar mal de celebridades, sendo que cada partido tem as suas? E há celebridades, não muitas, que dão bons representantes - Jean Wy%u20Bllys, por exemplo, que é ex-BBB.

E quanto aos italianos, que chegaram a eleger a famosa atriz pornô, Cicciolina? Também foi pelo sistema proporcional. Ela era uma celebridade e representou um irônico voto de protesto. No Brasil, Tiririca é nossa Cicciolina.

O detalhe, ainda na comparação entre sistemas eleitorais, é que Cicciolina, que é húngara (naturalizada italiana), tentou depois a carreira política na sua Hungria, que tem sistema distrital. Não conseguiu apoio suficiente de eleitores do distrito de Kobánya para se candidatar.

Distritos e detritos eleitorais

Seria bom um debate menos apelativo e apoteótico sobre um tema que é muito restrito e que não trará nem um remédio milagroso, nem um veneno mortal. Quando se propõe a mudança do sistema proporcional para o distrital, se está falando simples e restritamente nas eleições para vereadores, deputados estaduais e federais.

Antes de se mudar o sistema de proporcional para o distrital, seria bom e prudente testarmos como ficariam as coisas se apenas acabassem as coligações em eleições proporcionais - essas que permitem que uma dezena de partidos se junte para eleger vereadores e deputados.

O sistema de lista aberta é aberto demais, %u20Be o tal do coeficiente eleitoral, que é um cálculo nebuloso demais para ser minimamente razoável, não é%u20B uma boa forma de se aproveitar os votos dados a todos os candidatos. Funciona mais como uma montanha de detritos que ajuda a eleger os candidatos mais improváveis e imprestáveis para a missão parlamentar.

O Senado brasileiro recentemente aprovou a proposta do tucano José Serra de voto distrital para vereadores em cidades acima de 200 mil habitantes. A proposta de Serra é mais uma asa de morcego na confusão que é a geleia geral do sistema político brasileiro.

E o povo assiste a tudo sem ser consultado

Todo sistema eleitoral tem vantagens e desvantagens. O britânico tem distorções? O brasileiro também. A principal diferença é que o eleitor britânico pelo menos foi consultado a respeito de como prefere votar e eleger representantes.

Ingleses, galeses, escoceses e irlandeses (da Irlanda do Norte) decidiram, em 2011, se gostariam de mudar ou de manter seu sistema. Preferiram deixar como está. Certos ou errados, os britânicos não quiseram outra coisa no lugar.

No nosso caso, a maioria dos cientistas políticos, dos políticos, dos partidos e dos comentaristas de imprensa acha que o assunto é "muito complexo" para ser decidido em plebiscito - no máximo, quem sabe, poderia rolar um referendo. Mas nem referendo acontece.

Votos e distritos são um assunto que diz respeito ao eleitor. É dele o voto. É ele quem mora no distrito. É ele quem vota e elege. Mas os congressistas ignoram esse princípio solenemente. Acham que o voto é um assunto apenas deles, de seu umbigo eleitoral.

Por isso, toda e qualquer proposta de reforma mais ampla acaba sendo sabotada pela maioria dos que acham que plebiscito, referendo, reforma e mudanças são palavras muito perigosas - bolivarianas, cubanas, poderíamos até dizer, para chocar, suíças, em homenagem ao país que mais gosta de plebiscitos e referendos.

São mesmo ideias muito perigosas. Se o povo começar a se meter mais na política, corre-se o sério risco de as coisas melhorarem. E aí, o que seria de muitos políticos e suas legendas?

Créditos da foto: Jose Maria Cuellar / Flickr

Texto original: CARTA MAIOR




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