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Domingo, 3 de Agosto de 2008 - ESTADÃO

Periferia, arte e inclusão social
Internet muda a cultura da periferia carioca

Márcia Vieira


Dias antes de embarcar para Moçambique, no final de 2007, a atriz Regina Casé e o marido, o diretor de TV Estevão Ciavatta, encontraram-se com o DJ Marlboro. Espécie de ponte entre a cultura da periferia e o mainstream do show biz, levando o som do morro para o circuito de casas noturnas da zona sul, Marlboro mostrou a eles o funk Passinho do Basquete, música que tinha acabado de ser composta pelo quarteto Ousados, da favela do Jacarezinho, uma das mais miseráveis do Rio. De tão recente, nem tocava ainda nos programas de funk das rádios cariocas. Quatro dias depois, na periferia de Maputo, capital de Moçambique, onde foram gravar um programa, Regina e o marido encontraram um CD com Passinho do Basquete à venda numa banca de camelô. "Levamos um susto", lembra Ciavatta. Segundo ele, o episódio prova que as novas tecnologias tornaram as favelas independentes, mudando, por meio da produção cultural, a maneira como a pobreza se vê e como a cidade vê a pobreza. "A favela está indiferente à cidade formal", diz o diretor. "Não precisa dela nem para viver nem para se expressar. Com a internet, as periferias estão conectadas com o mundo. Tem lan houses em tudo que é favela, cobrando R$ 1 a hora."
O caminho de Passinho do Basquete foi o mesmo de outros funks. O grupo colocou a voz na batida num computador caseiro. A música foi para sites de funk, páginas do Orkut e do MSN. Em Maputo, um produtor baixou a música da internet, gravou-a em CD e pôs à venda. Foi assim também com o hit Glamourosa, do MC (sigla de mestre-de-cerimônias) Marcinho, sucesso em Angola.


Para o antropólogo Hermano Vianna, estudioso da cultura da periferia, o surgimento desses novos gêneros musicais contribui não apenas para a inclusão social, mas também para a diversidade. "O funk carioca, o tecnobrega do Pará, o novo forró eletrônico são indústrias culturais paralelas, à margem do modelo tradicional", analisa. "Com domínio da produção e da distribuição, eles não precisam de gravadora ou da grande mídia. Essa descentralização permite que o heterogêneo sobreviva. Antigamente, o que era feito na favela, como o samba, chegava à cidade através de alguém da indústria cultural. Hoje, não."


Além de um meio de inclusão social, é um bom negócio. Funkeiros não ganham nada com a venda dos CDs caseiros, mas a fama os ajuda a lotar a agenda de shows pelo País e no exterior. Fora do Brasil, o funk carioca é ouvido, principalmente, em Angola, Moçambique e Portugal. Há casos como o do DJ Sany Pitbull, estrela dos bailes funk da favela do Cantagalo, em Ipanema, que também fazem sucesso em baladas de Nova York, Londres e Amsterdã, misturando toques de música eletrônica em seu estilo. Essa pequena revolução impulsionada pela web ajuda a traçar um perfil da periferia brasileira. "É um retrato multifacetado. São cenas diferentes com modelos de negócios diferentes. Funcionam como uma espécie de laboratório da indústria cultural do futuro", acredita Hermano.


A produção artística é intensa - e organizada. André Luiz Fontana, o Pernalonga, ouve em média 200 CDs por semana para selecionar o que vale a pena ser apresentado ao DJ Marlboro. Se a música for boa, o DJ financia uma produção mais caprichada, em seu estúdio, e toca em seu programa de rádio. Pernalonga mora na favela da Árvore Seca, na zona norte. Todo sábado anima um baile ali mesmo. Em sua casa, de dois quartos, ajuda os MCs a colocarem voz na batida em dois computadores, um laptop e uma precária mesa de som. Tudo conectado à internet graças ao "gato velox", conexão clandestina em banda larga. Pernalonga aposta que o funk vai ter uma reviravolta quando o nível de estudo dos funkeiros melhorar. "Muitas vezes eles não conseguem se expressar porque não dominam o português. Mas eles têm talento. É uma luta brava."


Aos poucos as letras deixam de lado o apelo excessivo ao sexo. "São um retrato do que é a vida nas favelas", diz Marlboro. O funk ainda tenta produzir uma letra tão forte quanto o Rap da Felicidade, da dupla Cidinho e Doca, lançado há mais de dez anos: "Eu só quero é ser feliz/Andar tranqüilamente na favela onde eu nasci/E poder me orgulhar/E ter a consciência que o pobre tem seu lugar." Cidinho e Doca têm seguidores, como Vinicius Alves da Silva, o MC Jack, e Anderson Gomes, o Chocolate, de Cidade de Deus, autores de Moral de Cria, manifesto contra a morte de crianças por bala perdida. Mas também fazem músicas bem-humoradas, como Rolé de Bicicleta, sobre meninas da favela: "Humilde trabalhador não faz o tipo das meninas/elas querem carro do ano e moto importada/se depender da gente as mercenárias estão ferradas." A carreira da dupla ia bem até Jack ser preso por roubo de carro. Passou dois anos preso e tenta recomeçar. Não é fácil. A tentação mora ao lado. Por isso o sucesso de funkeiros é tão importante. "O traficante era exemplo para a criançada. Só ele tinha carro, cordão de ouro. Hoje o MC é exemplo para a favela inteira", garante Marlboro.


O reconhecimento na comunidade (e fora dela) provocou mudança de atitudes na favela. Nas músicas, nos roteiros que fazem para cinema, nas peças de teatro, os artistas da periferia carioca querem falar de seu cotidiano. E ele não se resume a violência, tráfico e mortes, como se imagina. "Queremos falar de amor, de relacionamentos", diz Luciana Bezerra, de 34 anos, diretora de cinema e atriz, moradora da favela do Vidigal. "E de homossexualismo e convivência", emenda Rodrigo Felha, de 28 anos, coordenador do curso de audiovisual da Central Única de Favelas, a Cufa, que funciona no coração da Cidade de Deus.


Mais que admirar o esforço da turma, o cineasta Cacá Diegues se impressiona com a qualidade da produção. Há 14 anos, ele freqüenta favelas, fazendo documentários ou ajudando a criar cursos de audiovisual. "A periferia chegou à maturidade. No funk e agora no cinema, os moradores falam em seu próprio nome. E eles têm o que dizer." Por isso, há um ano, o cineasta revelado no filme Cinco Vezes Favela, de 1961, decidiu produzir o longa Cinco Vezes Favela, Agora por Eles Mesmos. São cinco episódios de 20 minutos cada um, feitos integralmente por moradores de favelas cariocas, do roteirista ao câmera, passando pelo diretor.


Apenas um episódio menciona o tráfico de drogas, ao qual as favelas do Rio costumam ser identificadas. É o que conta uma história de amor em Parada de Lucas. "Eles não querem falar sobre violência porque a vida deles não é só isso", acredita Cacá. O filme, orçado em R$ 3 milhões, será rodado no segundo semestre. Cacá organizou cinco oficinas de roteiro nas favelas, com média de 50 pessoas por turma. Cada oficina escolheu seu roteiro. Só no Vidigal concorreram 80 textos. Venceu Acende a Luz, de Luciana Bezerra.


Luciana aprendeu cinema no grupo Nós do Morro, que funciona numa bela casa no topo da favela, com vista para o mar do Leblon. Viu a vida mudar quando, há quatro anos, seu Mina de Fé ganhou o prêmio de melhor curta do Festival de Brasília. Hoje é roteirista do programa Dicas de um Sedutor, da Globo.


Acende a Luz é um conto de Natal. Num 24 de dezembro, a favela amanhece sem energia. O funcionário da Light não consegue resolver o problema. O episódio é cheio de personagens divertidos. "Ele acaba refém da comunidade. Como é cheio de preconceito contra favelado, acha logo que vai ser morto", conta Luciana.


Humor não falta também no roteiro de Felha, Arroz com Feijão, sobre um menino que faz de tudo para que o pai realize um sonho: comer frango no dia do aniversário. No desespero, rouba uma galinha do aviário, mas se arrepende, consegue ganhar o dinheiro, compra outra galinha e devolve a roubada com um cartaz: "Voltei." Felha começou como assistente de câmera do filme Falcões, Meninos do Tráfico, dirigido pelo rapper MV Bill, seu vizinho. Agora faz um documentário sobre homossexualismo nas favelas. Em oito anos de cinema, aprendeu uma lição. "Se um diretor que não mora em favela treme a câmera, todo mundo diz que é genial. Se a gente treme, vão dizer: ?O cara não consegue nem segurar a câmera direito?." Cacá defende o rigor. "O filme tem que ser bom. Mas acredito que o cinema que está nascendo pelas mãos desses meninos possa mudar a face do cinema brasileiro."

http://www.estadao.com.br/megacidades/rio.shtm





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