Geografia
História mal contada da América em livro de geografia
Recentemente, o jornalista Leandro Narloch publicou o seu novo Guia politicamente incorreto da história da América Latina, o qual ainda não tive tempo de ler. Mas já foi divulgado que esse livro, assim como o Guia anterior, visa desfazer as monstruosas distorções que os livros de história vêm transmitindo nas últimas décadas. Nesse sentido, cabe-me acrescentar que os livros de geografia não ficam atrás em termos de distorção ideologizada da história brasileira e latino-americana.
Um pequeno exemplo disso está em certas passagens do livro Geografias do mundo, de Marcos Carvalho e Diamantino Pereira (2005), sobre a formação dos Estados americanos. Depois de afirmar que a colonização se deu por meio de um confronto armado no qual os europeus se saíram vitoriosos por conta de sua superioridade militar, o livro descreve a independência das colônias espanholas da seguinte forma:
Entretanto, a definição das fronteiras de alguns países da América espanhola não decorreu exclusivamente dos confrontos entre as diversas elites criollas. Em alguns casos, essas elites se associaram aos remanescentes dos antigos povos e sociedades indígenas que, quando não foram totalmente dizimados, permaneceram resistindo e lutando pela afirmação de sua identidade cultural (Carvalho; Pereira, 2005, p. 116).
Já soa incoerente e inverossímil afirmar que os nativos sobreviventes de um extermínio quase total, mesmo tão reduzidos em número, conseguiram ter relevância política suficiente para influir em alguns processos de formação nacional em aliança com elites. O mais lógico seria afirmar que os "sobreviventes" eram politicamente importantes devido ao seu grande contingente populacional e que esse contingente era numeroso devido ao fato de que, ao invés de uma guerra de extermínio, o que houve foi um processo de colonização que se fez por meio principalmente de comércio e de alianças políticas e militares entre europeus e povos nativos muito variados. E esses povos não tinham uma identidade comum, como prova o fato de que viviam guerreando e oprimindo uns aos outros. Como me ensinou Antonio Carlos Robert de Moraes, em uma aula de pós-graduação, o exército comandado por Hernán Cortez na tomada da capital do Império Asteca era formado majoritariamente por homens recrutados junto aos povos nativos até então submetidos a esse império. Por sua vez, o historiador Matthew Restall destaca que os espanhóis só conseguiram derrotar os astecas porque se uniram a algumas facções desse povo que estavam em luta com outras, de sorte que os nativos eram numericamente superiores nas tropas que derrotaram o imperador asteca (citado por Narloch, 2009, p. 36).
Ademais, é notório que, em muitos países da América Latina, como México, Peru, Equador, Bolívia e Guatemala, há um elevado percentual de pessoas que descende dos antigos Incas, Astecas e Maias, entre outros povos pré-colombianos. E isso para não dizer que, em tais países, a herança cultural desses povos deixou marcas muito fortes e que perduram até os dias de hoje. Mas perduram não tanto como sobrevivência de uma identidade cultural defendida pelos nativos com unhas e dentes, conforme se poderia depreender da leitura do livro de Carvalho e Diamantino, e sim como produto de um amálgama das culturas desses povos com as dos europeus (Ribeiro, 1975).
Esse pequeno exemplo mostra como é fácil ensinar história ou geografia críticas: basta pintar confrontos épicos entre o Bem e o Mal sem dar importância à complexidade dos processos históricos e nem à coerência. Assim, fica muito fácil para os alunos entenderem e mais fácil ainda para escrever e publicar livros.
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CARVALHO, M. B.; PEREIRA, A. C. Geografias do mundo. São Paulo: FTD, 2005 (Coleção Geografias do Mundo).
NARLOCH, L. Guia politicamente incorreto da história do Brasil. São Paulo: Leya, 2009.
RIBEIRO, D. Os brasileiros. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Livro 1, 1975.
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