03/07/ 2007 - SOCIOLOGIA
Família brasileira na pós-modernidade
Maria ClÁudia Santos Lopes de Oliveira
Professora do Programa de Pós-graduação em Processos de Desenvolvimento Humano e Saúde, do Instituto de Psicologia da UnB. Psicóloga, doutora em Educação pela PUC-Rio, tem pós-doutorado na Clark University, Massachusetts, e é membro do Laboratório de Microgênese das Interações Sociais (Labmis).
Eventos associados ao contexto de violência em que vivemos deixaram de ser novidade. O que era inédito, e deixa de ser, são os episódios protagonizados por membros de famílias de classe média que ficam expostas à avaliação pública, quanto à sua função educativa, formadora e de proteção.
Na última semana, foi amplamente divulgado o episódio no qual jovens universitários da cidade do Rio de Janeiro foram identificados como integrantes de um grupo de perseguição a prostitutas que atuavam na Barra da Tijuca. Mais chocante do que ter as atividades da gangue desveladas após espancarem uma empregada doméstica, foi assistir ao pronunciamento do pai de um deles, que se posicionava indignado com a prisão do grupo de rapazes, dada sua condição de universitários e com residências fixas.
O evento acima revela uma condição contemporânea em que os padrões de relacionamento, transmissão de valores e construção de pautas de ação social por meio das famílias das camadas médias encontra-se em crise. Denota situações em que as famílias parecem ter falhado no exercício coerente e eficaz dos papéis de educação, proteção e regulação do comportamento que a sociedade lhes atribui. Somos, então, impelidos a refletir sobre o que está acontecendo com a família brasileira nos dias atuais, e a buscar compreender a que papel ela responde na realidade sociocultural contemporânea.
Tomando como princípio que processos como tais são complexos e difíceis de apreender na sua totalidade, é possível ensaiar algumas linhas de reflexão, a começar por uma breve análise da história social da família no Brasil. Duas evidências parecem iluminar a compreensão dos casos presentes: que as funções de proteção, cuidado e preservação da prole ? que costumamos tomar como características naturais da espécie humana ? são produções sócio-histórico-culturais muito recentes; e que o regime jurídico que, a partir do fim do século XIX, veio dar suporte à regulação social das famílias no cumprimento da função de proteção teve por foco as famílias pobres e em situação de risco social.
Até a instituição do Estatuto da Criança e do Adolescente, toda a legislação brasileira parecia tomar como natural a competência das famílias de camadas médias e altas da população para cuidar, transmitir valores e formar cidadãos plenos. Enquanto isso, para as famílias menos favorecidas, a condição de pobreza era tida como fator impeditivo para práticas educativas promotoras de pleno desenvolvimento humano.
No Brasil Colonial, o contexto rural e o regime escravagista eximiam de pais e mães a maior parte dos encargos gerados pela maternidade. As práticas de cuidado infantil não se baseavam no vínculo afetivo mãe-pai-filhos, a amamentação e os primeiros cuidados eram providos por amas, escolhidas entre as escravas. Em outras palavras, não se encontrava por aqui, de modo claro, a noção de responsabilidade e/ou poder familiar, da forma como hoje o concebemos.
A lenta transição da sociedade brasileira para a modernidade tem como marco a vinda da família real portuguesa para viver aqui, em 1808. Este fato engendra uma série de novidades culturais e intensifica a influência de valores europeus em diferentes contextos da vida social. A emergente família burguesa brasileira passa a ver nos internatos o contexto ideal para a educação e a formação das gerações mais novas. Como a maior parte dos colégios vinculava-se a ordens religiosas, pode-se supor que, durante quase duzentos anos, os valores de classe média e a regulação moral do comportamento de várias gerações foram apoiados na moral cristã.
À medida que o sistema de ensino laico foi-se disseminando em território brasileiro, também a escola vai-se convertendo em espaço multicultural, que reflete e dá voz à multiplicidade de influências culturais presentes na sociedade. Por outro lado, ao passo que as relações de trabalho vão se tornando cada vez mais complexas, também a família passa a depender de modo crescente da escola e de instituições de cuidado, como creches e escolas de esportes.
Mesmo não mais permanecendo durante a infância e adolescência reclusas em internatos, a típica infância e adolescência de classe média da contemporaneidade tem seu tempo dividido entre rotinas e atividades que visam a ampla ocupação de seu tempo. As atividades são orientadas para o aprimoramento de competências virtualmente exigidas pelo futuro mundo do trabalho, de tal modo que pouco tempo é deixado para as interações afetivas espontâneas, as amizades, a formação de grupos de pares e o lazer. Ademais, pouquíssimas oportunidades são dadas ao convívio familiar, ao conhecimento mútuo de pais e filhos, ao desenvolvimento da identidade familiar e à negociação de uma pauta coerente de valores, que o jovem leve para a vida social.
Assim, proponho refletir sobre os efeitos subjetivos desse cenário. O processo de individuação no curso de vida converte-se em individualização. Não são desenvolvidas as competências para o lidar com a diferença, com a alteridade. A ação social da pessoa é marcada pela xenofobia, pelo intenso desprezo pelos diferentes. Nesse aspecto, é importante salientar que, desde tempos imemoriais, a juventude tem no comportamento de risco um fator de desenvolvimento. Entretanto, ensaiar comportamentos de risco costumava representar novas possibilidades para o ?eu? por meio da superação de limites. O que nos causa preocupação nos dias atuais é que as situações de risco vêm ancoradas na negação, no desrespeito e na destruição do outro. Deixa de ser oportunidade de desenvolvimento e se converte em crime!
http://www.secom.unb.br/artigos/at0707-01.htm
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