Sob o sol e o céu da fronteira, os pés descalços de trabalhadores e trabalhadoras que caminham sobre a BR 290, em São Gabriel, pedem mais do que terra. A marcha do MST rumo à Fazenda Southall é, na verdade, um grito de alerta a todos aqueles que se preocupam com o futuro do Rio Grande do Sul e do Brasil.
A marcha escancarou duas visões distintas sobre o modelo de desenvolvimento para o meio rural. De um lado, poucos latifundiários, beneficiários de grandes extensões de terra que não cumprem sua função social, ansiosos por entregarem nosso Pampa às multinacionais da celulose, como é o caso da Aracruz, que tenta comprar ilegalmente a Fazenda Southall para implantar a monocultura do eucalipto. Do outro, centenas de trabalhadores que têm uma reivindicação justa: a desapropriação, para fins de Reforma Agrária, deste latifúndio de mais de 13 mil hectares, onde poderiam ser assentadas aproximadamente 600 famílias de agricultores, produzindo alimentos, gerando empregos e movimentando a economia da região.
É pública a informação de que o proprietário da Fazenda Southall possui dívidas com os cofres públicos de cerca de R$ 48 milhões, quase o mesmo valor da área. A Aracruz está negociando a compra deste latifúndio, infringindo a lei que impede a negociação de terras sob notificação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Mais do que desrespeitar a lei, o fato constitui-se num verdadeiro absurdo. Neste Brasil com tanta gente sem terra e com tanta terra sem gente, uma empresa multinacional, que recebe financiamento público através do Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES), usará dinheiro do povo brasileiro para se apropriar de uma terra que já deveria ter sido transformada em assentamento. Para quem não se lembra, em 2003 o Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou o decreto de desapropriação da Fazenda Southall, em circunstâncias até hoje não esclarecidas, que envolvem até mesmo uma relação de parentesco da ministra do STF, Ellen Gracie, com a família do proprietário.
O MST defende que as terras brasileiras sejam destinadas aos trabalhadores brasileiros, e não a multinacionais que se apropriam dos nossos recursos naturais, exploram nossa força de trabalho e enviam os lucros para fora do Brasil. A própria Aracruz anunciou, recentemente na imprensa, que vai exportar 100% da produção de celulose da nova fábrica de Guaíba, a partir de 2011. Ou seja, não deixará aqui nem o dinheiro dos impostos, uma vez que a chamada Lei Kandir livra de taxas as empresas exportadoras.
A Aracruz anunciou, ainda, que pretende plantar nada menos que 155 mil hectares no Estado, gerando mil empregos na área “florestal”. Trocando em miúdos, a empresa admite que vai gerar apenas um emprego a cada 155 hectares plantados. Os demais empregos, que surgem aqui e ali, são sazonais e precários.
Para além da questão econômica, é preciso deixar claro que empresas como a Aracruz Celulose praticam verdadeiros ataques ao meio-ambiente e às populações pobres nas regiões onde atuam. No Espírito Santo, um parecer da Fundação Nacional do Índio (Funai) comprova que a Aracruz se apropriou de 18 mil hectares de terras dos índios Tupiniquim e Guarani. Contra eles, a empresa lançou uma série de ataques, motivo pelo qual está sendo denunciada pelo Ministério Público Federal (MPF) daquele Estado por racismo praticado contra as populações indígenas.
O eucalipto, plantado em larga escala, acarreta impactos ambientais devastadores. Um estudo do engenheiro agrônomo Carlos Alberto Dayrell, de Minas Gerais, revelou que no Norte daquele Estado as monoculturas de eucalipto consumiram, em sete anos, mais de 1,6 bilhões de metros cúbicos de água, comprometendo a recarga dos aqüíferos da região. No norte do Estado do Espírito Santo, a Aracruz consome água equivalente ao abastecimento de 2,5 milhões de pessoas por dia. Será uma agressão à região da Campanha, que já vem enfrentando secas nos últimos anos. Além disso, as fábricas de celulose estão entre as mais poluidoras das indústrias, despejando no ar e nos rios o Dióxido de Cloro, utilizado no branqueamento da celulose.
No Rio Grande do Sul, correm no MPF pelo menos 11 inquéritos que analisam possíveis violações da legislação ambiental praticadas pelas empresas de celulose. A multinacional filandesa Stora Enso, por sua vez, faz pressões para que a chamada faixa de fronteira seja reduzida, através de mudanças na lei federal, de 150 km para 50 km, porque nesta área estão proibidas as compras de terra por empresas estrangeiras. É por essas e outras que as três grandes empresas – Aracruz, Votorantim e Stora Enso – doaram R$ 1,960 milhão para o financiamento das campanhas de candidatos gaúchos nas últimas eleições. Foram eleitos com ajuda das empresas de celulose nada menos que 35 deputados estaduais e federais do Rio Grande do Sul, alguns dos quais são freqüentemente vistos nos churrascos promovidos pelos ruralistas nas barreiras contra as marchas do MST.
Essas informações resumem um pouco das práticas destas empresas, que estão querendo se apossar de aproximadamente um milhão de hectares de terra para implantar, no nosso Estado, os chamados desertos verdes. As grandes plantações de eucalipto são assim chamadas porque, além de consumir uma grande quantidade de água, impedem o crescimento da vegetação e a sobrevivência dos animais, com as altas cargas de veneno aplicadas. Nos “bosques do silêncio”, como definiu o escritor uruguaio Eduardo Galeano, a terra é ressecada e o solo, arruinado. Neles, os pássaros não cantam.
O projeto de desenvolvimento para o campo defendido pelo MST é outro. É um modelo baseado naquilo que o latifúndio exportador não faz: produzir alimentos e gerar empregos no nosso País. Reforma Agrária é isso. Um estudo recente conduzido pelo geógrafo da Universidade de São Paulo (USP), Ariovaldo Umbelino de Oliveira, revelou que as pequenas propriedades rurais são responsáveis por 88% da produção de aves, 72% da produção de leite e 87% da produção de suínos consumidos pela população brasileira, para ficarmos apenas em alguns exemplos.
Mas não é preciso irmos longe para compreendermos a importância da Reforma Agrária, principalmente em uma região marcada pela existência de grandes propriedades rurais que só atingem os índices mínimos de produtividade porque estes estão baseados no censo agropecuário de 1975. No município de Pontão, no norte do Estado, existe um dos mais antigos assentamentos do MST. Na área de nove mil hectares da Fazenda Anoni, hoje vivem 420 famílias de agricultores, que produzem anualmente 20 mil sacas de trigo, seis milhões de litros de leite, 150 mil sacas de soja, 35 mil sacas de milho, 45 toneladas de frutas, 800 cabeças de gado, cinco mil cabeças de suínos e dez mil quilos de hortaliças. Essa produção movimenta o comércio local e leva alimento sadio para a mesa dos trabalhadores da região. Não é à toa que 26 prefeitos daquela região pediram publicamente a desapropriação da Fazenda Guerra, uma área de nove mil hectares localizada em Coqueiros do Sul. Mais perto de São Gabriel, na região de Bagé, o MST desenvolve o projeto da Bionatur, uma cooperativa que produz 117 variedades de sementes livres de agrotóxicos, envolvendo o trabalho de 230 famílias, em 20 municípios do Sul do Brasil e de Minas Gerais.
Esse é o destino defendido pelo MST para a Fazenda Southall. Um assentamento para 600 famílias no local geraria 1,8 mil empregos só na agricultura. Seria um emprego a cada sete hectares, muito mais do que o prometido pela Aracruz. Isso sem contar os postos de trabalho na construção de casas, para motoristas, comerciantes, professores, entre outros. Para se ter uma idéia, o assentamento da Fazenda Anoni, em Pontão, possui seis escolas públicas. Os funcionários e arrendatários da Southall também serão beneficiados pela Reforma Agrária, ao contrário do que aconteceria caso a Aracruz, de fato, comprasse a área.
Todas essas informações não são ditas pelos latifundiários e por parte da mídia, que qualificam os trabalhadores Sem Terra de desocupados e baderneiros. Numa sociedade em que os políticos e a imprensa são financiados pelas grandes empresas do agronegócio, é natural que isso ocorra. A estes, cabe perguntar se estarão dispostos a se alimentar de eucalipto num futuro próximo.
A Constituição Federal diz que a terra que não cumpre sua função social deve ser destinada àqueles que nela desejam trabalhar. E não há maior desrespeito a esta função social que um latifúndio inadimplente ou um deserto verde. Por isso, os trabalhadores e trabalhadoras do MST, que integram esta grande marcha na região de São Gabriel, têm o direito constitucional de conquistar a terra para produzir seu próprio sustento. São eles que irão levar alimento à mesa da população. Foram eles que alertaram a região sobre a verdadeira invasão das multinacionais do eucalipto. Prestemos atenção, pois, no que dizem os pés descalços que avançam sobre a BR 290.
Fonte: Coordenação estadual do MST RS