Geografia
Esculhambamos a Wikipédia. Ou: Imparcialidade já!
No tempo em que Jô Soares ainda comandava programas humorísticos na TV, um de seus personagens era um mafioso italiano que, desacorçoado quando seus comparsas lhe davam notícias sobre golpes que fracassavam porque os capangas tinham ido pular carnaval, entre outras coisas do gênero, soltava o seguinte bordão: "eu bem que avisei; não manda a máfia pro Brasil que esculhamba a máfia".
Num certo sentido, foi o que aconteceu com a Wikipédia. Se o Avaaz é, assumidamente, um movimento político que exclui as petições contrárias às ideologias dos integrantes e financiadores da organização (sejam lá quem for...), a Wikipédia nasceu para ser um canal de divulgação de conhecimentos pautado pelo princípio da imparcialidade. Todavia, a Wikipédia lusófona se tornou alvo da estratégia petista de aparelhamento da internet, na medida em que certos colaboradores da "enciclopédia livre" usam a regra de escrever artigos referenciados em fontes fiáveis para reproduzir mentiras e até difamar adversários do partido.
Eu sou um dos muitos editores da Wikipédia, e já dei contribuições a vários verbetes que tratam de geografia, como Território, Região e Friedrich Ratzel. Duas dessas contribuições mostram que, ao contrário do que dizem marxistas, freirianos e esquerdistas em geral, é perfeitamente possível ser fiel ao princípio da imparcialidade.
Quando li o verbete História do Pensamento Geográfico, constatei que, além de muito mal escrito e com poucas fontes, o texto fazia interpretações totalmente centradas nas visões da geocrítica. Daí que todos os geógrafos anteriores a essa corrente são classificados como "positivistas" (sic), e a geocrítica aparece como a única corrente, digamos, "verdadeira". Os problemas eram tantos que o melhor seria apagar quase tudo e reescrever o texto. Mas considerei que esse não era o melhor caminho, em se tratando de uma obra coletiva. Fui à página de Discussão do verbete e apresentei uma série de críticas, devidamente referenciadas por fontes. A discussão não foi adiante porque ninguém se interessou, então o verbete continuou como estava, mas com os meus questionamentos disponíveis para qualquer um ler.
Já quando li o verbete Milton Santos, achei-o razoavelmente bom. Mas um problema do texto é que ele trazia muitas informações que não estavam referenciadas por fontes, e outros editores já haviam indicado isso. Ora, as coisas que já escrevi sobre esse autor no livro Por uma crítica da geografia crítica (Editora da UEPG, 2013), assim como neste blog (ver abaixo), mostram que meu pensamento é totalmente avesso ao dele. Mas não expus nenhuma crítica às ideias de Milton Santos na Wikipédia. Tudo o que fiz foi colocar as referências bibliográficas que corroboravam os resumos das ideias dele apresentados no verbete, melhorando a qualidade do texto.
Como sou geógrafo, todas as minhas contribuições foram em verbetes dessa área de conhecimento. Nunca escrevi sobre política lá, por exemplo. Mas percebi o aparelhamento da Wikipédia ao ler alguns verbetes e páginas de discussão sobre esse assunto, nas quais ficava bem nítido que certos editores estavam lá para divulgar mentiras úteis ao projeto de poder do PT, e citavam textos de jornalistas chapa branca, como Paulo Henrique Amorim, como "fontes fiáveis" para justificar o que tinham publicado. Mais tarde, quando publicaram um verbete para tratar dos atos de vandalismo que espocaram em junho de 2013, a partir da manifestação fascistoide convocada pelo Movimento Passe Livre, explicitou-se que os editores escreviam como se a Wikipédia fosse um fórum de debate, muito embora um dos seus princípios seja justamente a proibição de edições que se destinam a convencer os leitores sobre qual lado está com a razão.
É certo que a Wikipédia tem mecanismos para tentar evitar esse tipo de problema. Todavia, o uso da Wikipédia para fazer difamações contra Gilmar Mendes (ministro do STF que cumpriu um papel chave para que os mensaleiros fossem a julgamento) atestou que esses mecanismos são insuficientes. Por volta da época em que Lula ensaiou chantagear Mendes para influir no julgamento, o verbete sobre esse ministro foi contaminado por difamações. Ele reclamou, é óbvio, mas o responsável por evitar essa clara violação dos pilares que deveriam reger a Wikipédia simplesmente não o atendeu. Pior ainda, o sujeito excluiu da biografia de Mendes as passagens que lhe eram favoráveis e preservou aquelas que prejudicavam sua imagem (ver aqui).
Raízes da esculhambação
Por que, no Brasil, a Wikipédia é vulnerável a um aparelhamento político tão escandaloso? Decerto, não pelo espírito festeiro, informal e irresponsável que definiria o suposto "caráter brasileiro", tal como aquele quadro de Jô Soares satirizava. O problema está no fato de que o Brasil é um país onde os valores democráticos são pouco enraizados, o que abre caminho para a existência e hegemonia de um partido como o PT, o qual tem características fascistoides e que, por isso mesmo, procura se impor pela violência, pela mentira e pelo aparelhamento do Estado e de todas as instituições influentes sobre a opinião pública.
Além disso, há um sério calcanhar de aquiles na Wikipédia (tanto no Brasil quanto internacionalmente) que diz respeito aos incentivos que motivam os editores de seus verbetes. Mas isso é assunto para outra hora. Por enquanto, encerro com duas conclusões. A primeira é que a imparcialidade é um princípio necessário e ao alcance de todo aquele que o tiver como um norte na elaboração e divulgação de conhecimento, como se vê pelos exemplos citados acima. A segunda é que minha experiência como leitor e editor da Wikipédia me levou a rever a opinião que tinha inicialmente sobre o projeto de uma enciclopédia livre. Hoje, considero que é melhor uma enciclopédia profissional, como a Britânica, que produz informação com fins comerciais e usa um sistema de curadoria para zelar pela credibilidade e qualidade das informações.
Em função de tudo isso, parei de editar na Wikipédia. Enciclopédia livre só é melhor para fãs que querem se manter atualizados sobre seriados de TV...
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