Matthias ScheppMeia década após a crise de reféns de Beslan, os sobreviventes e as famílias das vítimas sentem-se abandonados pelo Estado russo. As autoridades não desejam ser lembradas de como as forças de segurança russas mostraram-se incapazes de lidar com um ataque terrorista que provocou a morte de tantas crianças.
Era um dia escaldante de verão quando Alan Adyrkhayev, um médico, recebeu uma carta da sua filha de 11 anos, Emília. A carta era incomum, até porque pai e filha moram na mesma casa em Beslan, uma pequena e poeirenta cidade na Ossétia do Norte, situada entre as mntanhas do Cáucaso. Mas o pedido de Emília era suficientemente importante para merecer a redação de uma carta.
Mulher chora em túmulo de vítima da tragédia
"Esta carta é dedicada à nossa mãe Ira", escreveu a menina com a sua letra de criança. "Os anos passaram, mas eu nunca esquecerei o seu sorriso, os seus olhos e o seu carinho". A declaração de amor de Emília à sua mãe morta terminou com um pedido de vingança. "Os russos devem matar os inguches, da mesma forma que eles mataram a nossa Beslan".
Foram terroristas inguches, bem como alguns tchetchenos, que invadiram a escola Número Um, em Beslan, em 1º de setembro de 2004, tomando como reféns 1.127 alunos, professores e pais. As autoridades russas, despreparadas para tal ação, não perderam muito tempo com negociações, e lançaram uma operação de resgate insensível que terminou em um caos sangrento.
Nunca antes um ataque terrorista tirou a vida de tantas crianças. Dentre os 334 mortos, 186 eram alunos da escola ou irmãos dos alunos. Além disso, 17 crianças perderam o pai e a mãe, e 72 ainda padecem de graves deficiências físicas. A mulher de Adyrkhayev, também médica, morreu durante o ataque. Beslan foi o 11 de setembro da Rússia.
"Um ato de desespero"
"Eu não quero que a minha filha passe a vida com tanto ódio", diz Adyrkhayev. "Mas sinto-me impotente". Adyrkhayev, um homem de cabelos negros e olhos tristes, está sentado no seu consultório no segundo andar do hospital municipal. Ele está mais familiarizado do que qualquer dos outros 36 mil moradores de Beslan com as consequências de longo prazo da tragédia. Adyrkhayev enxerga essas consequências nos seus pacientes, incluindo Kristina, de 12 anos, que ele tratou na manhã da entrevista, e cuja pressão arterial era de 160. Um outro paciente de 12 anos de idade, Vladimir, cortou a própria mão com uma faca. "Não foi uma tentativa de suicídio, mas um ato de desespero. Ele provavelmente encontra-se inconscientemente torturado pela sensação de que não merece estar vivo depois que uma quantidade tão grande dos seus colegas de classe morreu."
Adyrkhayev descreve um outra paciente sua, Karina Kussova, uma menina bonita de 13 anos, cuja perna esquerda ficou desfigurada por queimaduras do pé aos quadris. Com uma renda total de aproximadamente 250 euros (cerca de R$ 661) por mês, o seu pai, um trabalhador da construção civil, e a sua mãe, que é operadora de guindaste, não conseguem arcar com a despesa semanal de 540 rublos (aproximandamente R$ 32) com a compra de uma pomada cicatrizante, e muito menos com os cinco mil euros (cerca de R$ 13.257) necessários para um transplante de pele e remoção de quatro estilhaços de munição, uma cirurgia que teria que ser realizada em Moscou.
Mas aquilo do qual a garota de cabelos longos e castanhos mais precisa é de ajuda psicológica. À noite ela imagina que os seus bichos de pelúcia transformam-se em terroristas que usam máscaras negras. Certa noite, Karina acordou gritando, após sonhar que a sua perna ferida tinha sido arrancada do seu corpo magro e jazia, sem vida, ao seu lado na cama.
"O governo não faz nada"Após a brutal crise dos reféns, que durou 52 horas, Beslan foi inundada por uma onda de compaixão e ofertas de assistência. Pacotes de ajuda humanitária chegaram do mundo inteiro, da Austrália à Jordânia, incluindo 46 aparelhos de televisão, 19 fornos de microondas, 196 telefones, 35 câmeras e "uma quantidade de bichos de pelúcias suficiente para encher os quartos de todas as crianças desta província", como diz uma professora que sobreviveu ao ataque.
O prefeito de Moscou construiu duas escolas modernas na cidade, celebridades do setor russo de entretenimento fizeram shows beneficentes, bancos financiaram a construção de playgrounds e doadores privados e governamentais pagaram o equivalente a 30 mil euros (cerca de R$ 79,5 mil) por cada pessoa morta e 20 mil euros (cerca de R$ 53 mil) a cada indivíduo gravemente ferido no incidente - quantias que não são pequenas na região pobre do Cáucaso.
Entretanto, cinco anos depois, muitos dos sobreviventes e familiares das vítimas sentem-se abandonados. Devido ao legado do sistema de saúde soviético, pouquíssimos moradores de Beslan têm seguro saúde. "O governo não faz nada", critica Adyrkhayev. "Não há exames regulares, e não existe um departamento central do governo para prestar assistência àqueles que buscam ajuda."
O novo hospital, com as suas paredes brancas brilhantes e o telhado azul reluzente - tão atraente e de aparência tão diferente como se tivesse caído dos céus sobre o Cáucaso - foi construído dois anos atrás na periferia de Beslan. Trata-se do hospital mais caro da região, mas ele tem dois problemas. Primeiro, a falta de verbas e de licenciamento significa que este hospital novo em folha ainda não abriu as suas portas. Segundo, o plano inicial não incluiu um departamento de psicologia pediátrica. "Isso significa que os meus jovens pacientes terão que esperar até que cresçam?", resmunga Adyrkhayev.
Enquanto isso, um em cada dois dos 60 leitos do hospital existente no município precisa ficar vazio porque não há dinheiro para reformar o prédio caindo aos pedaços. No início deste mês, a prefeitura da cidade reduziu em 20% os salários de médicos e enfermeiros. Antes disso, Adyrkhayev ganhava 9.000 rublos (aproximadamente R$ 530) por mês, mas somente fazendo vários plantões noturnos.
Suprimindo memórias do banho de sangue
Ao que parece, a Rússia, que possui a terceira maior reserva monetária mundial, preferiria simplesmente suprimir as memórias do banho de sangue de Beslan, da mesma forma como se esqueceu do massacre de mais de 170 pessoas perpetrado por terroristas tchetchenos em um teatro de Moscou em outubro de 2002. Beslan tornou-se um sinônimo da destruição de crianças como "uma demonstração de poder completamente destituída de remorso", diz o escritor russo Victor Erofeyev. O episódio significa também que atualmente os russos veem qualquer uso da violência como "um fenômeno de ordem metafísica".
Vladimir Putin, que era o presidente quando ocorreu a tragédia de Beslan, só foi uma vez ao local desse crime, logo após o massacre. Os responsáveis pela invasão amadorística do prédio da escola por parte das forças russas de segurança não foram punidos, e alguns foram até promovidos. Ainda há dúvidas quanto à versão de que havia 32 sequestradores. Muita gente em Beslan acredita que alguns terroristas conseguiram escapar.
O assunto é mais ou menos um tabu na televisão russa controlada pelo Estado. Membros de um grupo chamado Mães de Beslan reclamam de que passaram anos tentando sem sucesso contar a sua história em algum programa importante de entrevistas televisivas. Isso fez com que uma das líderes do grupo, Susanna Dudieva, rotulasse o incidente de Beslan e os fatos que se seguiram a ele como "uma desgraça dupla". Ela diz que, mesmo tendo informações sobre a possibilidade de um ataque terrorista iminente nos dias que antecederam a crise dos reféns, o governo foi incapaz de proteger as crianças. E agora ela acrescenta que o governo as esqueceu.
Há um álbum de fotografias em um canto do pequeno escritório dela perto da escola destruída. Uma das fotos mostra o torso queimado do seu filho, Saur. Ele estava sentado exatamente embaixo de uma das cargas explosivas que os sequestradores colocaram na cesta de basquete na quadra esportiva da escola. Os reféns ficaram agachados lá, amontoados em meio ao calor escaldante em sem água para beber. As crianças foram obrigadas a ver os terroristas matarem a tiros o professor de educação física Ivan Kanidi.
Os custos de longo prazo"Quem quer que tenha presenciado isso ficou traumatizado por toda a vida", afirma Adyrkhayev. O médico afirma que alguns dos seus pacientes reclamam de dores de cabeça constantes, para as quais ele não tem explicação. As suas próprias filhas, Emília e Milana, só conseguem dormir com as luzes acesas. Na mesa dele há uma lista com os nomes de oito crianças que necessitam urgentemente de cirurgias, mas não há dinheiro para pagar pelas operações. O nome de Fatima Dzgoeva está no topo da lista.
Fatima tem 15 anos, mas os seus familiares dizem que ficam satisfeitíssimos se ela consegue somar os números 20 e 20. Quando unidades policiais de elite russas invadiram a escola, um fragmento de munição penetrou na testa dela e saiu na parte anterior da cabeça.
Miraculosamente, sobreviveu, mas passou 19 dias em estado de coma.
Ela passou os três anos seguintes deitada em uma cama, usando fraldas e incapaz de pronunciar uma palavra sequer. Após cinco cirurgias, duas delas no Hospital Charité, em Berlim, ela pode agora caminhar e dizer algumas palavras.
Georgiy, o irmão de Fatima, que nasceu após a crise dos reféns, está brincando na areia em frente ao prédio de tijolos vermelhos onde a família mora. A tia dela, Lana, que deixou o emprego de professora de jardim de infância para ajudar a sobrinha portadora de deficiências graves, está falando freneticamente ao telefone com médicos da província, já que ninguém consegue encontrar na região o medicamento que reduz a pressão intracraniana de Fatima. Ela trouxe o remédio consigo da Alemanha, mas o estoque atual só é suficiente para mais uns poucos dias.
O cemitério mais bonito da RússiaA tia de Fátima escreveu para o governador na capital da província, Vladikavkaz, a 21 quilômetros de Beslan, para arrecadar dinheiro para a operação e tratamento da sobrinha em Berlim. "Estou muito grata pelo fato de o governo nos ter ajudado", diz. Mas, logo após, a indiferença instalou-se. Ninguém quer pagar pelas consequências de longo prazo, e os sobreviventes enfermos foram relegados à condição de suplicantes.
E não são apenas as crianças que sofrem com esse problema. Os adultos traumatizados também precisam de ajuda. Perto do hospital novo, mas ainda inútil, fica a "Cidade dos Anjos", o cemitério mais bonito e bem cuidado da Rússia, com as suas 268 sepulturas.
O diretor do cemitério, Kaspolat Ramonov, colocou rosas na sepultura da filha no início da manhã. Ela estava no segundo ano secundário quando morreu, e atualmente teria 20 anos de idade. "Mariana era tudo para mim", diz.
Ele fala baixo, somente elevando a voz e manifestando indignação quando lhe perguntam há quanto tempo trabalha neste cemitério. "Eu não trabalho nele", declara Ramonov. "Eu moro aqui".
Tradução: UOL
Revista DER SPIEGEL
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