A pouco mais de uma semana das eleições, o núcleo da campanha do candidato do PSDB, José Serra, debatia-se com a possibilidade ou não de usar, no horário gratuito da tevê, um vídeo de terror eleitoral criado no melhor estilo do cineasta Zé do Caixão para fazer de cada eleitor brasileiro uma Regina Duarte em pânico. Na peça, veiculada na internet, pergunta-se se Dilma Rousseff será capaz de segurar os radicais do PT, “o partido que não gosta da imprensa”, representados por cães da raça rottweiler. Um dos pontos altos da propaganda mostra um exemplar da revista Veja em chamas.
A dúvida sobre a exibição não era só de ordem “marqueteira” (ataques desse naipe funcionam ou não?), mas jurídica. A lei eleitoral proíbe “efeitos especiais” na campanha, entre eles colocar atores para interpretar personagens reais – no caso Lula e Dilma.
O comercial tucano coroa um momento singular da vida política brasileira. Após o presidente da República reclamar do comportamento da mídia (reportagem à pág. 40), que, segundo ele, age como partido político, uma reação capitaneada pelos meios de comunicação fez lembrar as marchas que clamavam pelo golpe militar em 1963 e 1964. O mais badalado evento, um ato na Faculdade de Direito do Largo São Francisco precisou arregimentar alunos às pressas para formar um quórum de 150 participantes e propiciar a foto que os jornais estampariam no dia seguinte.
Chamado de “ato contra o autoritarismo” e saudado como reação indignada da “sociedade civil”, o ato reuniu, em sua essência, militantes e simpatizantes do PSDB, entre eles ex-ministros do governo FHC, como José Gregori e José Carlos Dias. O ex-comuna Ferreira Gullar e o historiador Marco Antonio Villa, que integram um pequeno grupo de “intelectuais” sempre dispostos a corroborar as críticas fáceis e os lugares-comuns. Talvez por isso o movimento tenha repetido com tanta diligência e exatidão os pensamentos de seu mentor, FHC. Lula foi comparado a Mussolini, Luís XIV e Hugo Chávez. Faltaram citações a Stalin, Fidel Castro, Hitler e ao próprio Asmodeu, mas deve ter sido por falta de tempo.
Em reação, na quinta 23, o Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé promoveu, na sede do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, ato contra o que chamaram de “golpe midiático”. Mas, ao contrário das alvíssaras dedicadas ao evento no Largo São Francisco, a manifestação dos movimentos sociais foi retratada nos meios de comunicação como uma reunião patrocinada pelo governo e o PT com viés autoritário. Como se vê, quem se apresenta como democrata pretende, no fundo, monopolizar a liberdade de expressão.
É tal o anseio por liberdade dessa turma, aliás, que vale até recorrer aos milicos de pijama do Clube Militar do Rio de Janeiro. Reduto de notórios democratas, como é de conhecimento geral, o clube sediou, também na quinta 23, debate intitulado “A democracia ameaçada: restrições à liberdade de expressão”. Participaram os jornalistas Merval Pereira, de O Globo, e Reinaldo Azevedo, blogueiro da revista Veja, além do diretor de assuntos legais da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), Rodolfo Machado Moura. Não se sabe quando a liberdade de imprensa passou a preocupar tanto os aposentados das casernas, que nunca esconderam as saudades da “gloriosa revolução” que calou jornalistas e torturou e matou seus opositores. O Brasil nunca esquecerá a contribuição desse grupo ao avanço da nossa democracia.
Quem observa a distância não duvidaria em definir como sanatórios certos ambientes do País. A partir de algumas denúncias concretas, cuja apuração rigorosa e completa é absolutamente necessária, envenenou-se o ar na reta final da campanha. Embora a maioria da população não compartilhe desses sentimentos e esteja alheia às disputas pelo poder, o clima revela mais uma vez a dificuldade de uma parcela substancial da chamada “elite” de compreender a realidade à sua volta.
A enxurrada de denúncias, algumas fundamentadas e outras não, formou um repasto. Novas acusações substituem as anteriores antes mesmo de os fatos terem sido esclarecidos. Há menos de um mês, o que mobilizava a campanha de Serra era a criminosa quebra de sigilo fiscal de amigos, correligionários e de sua filha Verônica. O tucano, de início, acusou a adversária Dilma Rousseff de participação no crime. Como o caso não rendeu os frutos eleitorais esperados, a oposição abandonou a estratégia. Sem a pressão do jogo político, a apuração policial caminha cada vez mais para demonstrar que se tratou de crime comum, a comprovar a notória suspeita de que a Receita Federal virou um balcão de negócios no qual se negociam impunemente os dados dos cidadãos que a autarquia deveria preservar.
Sem condições de culpar a candidata governista, partiu-se para o segundo tiro: as denúncias de nepotismo e tráfico de influência a envolver a ministra-chefe da Casa Civil, Erenice Guerra, principal assessora de Dilma Rousseff no governo, e seus parentes. Desta vez, apesar de a acusação central não ter sido comprovada até o momento, o pagamento de propina de 5 milhões de reais que iriam parar na “campanha eleitoral”, a consistência de várias das acusações provocou um efeito dominó. Erenice, seus parentes e outros envolvidos foram obrigados a deixar postos no governo. O escândalo colocou Dilma na defensiva e aumentou a esperança de um segundo turno, ainda que os números continuem a indicar o desfecho das eleições em 3 de outubro.
Em todos os casos, falta o nexo causal entre Dilma e o lobby praticado pelos filhos de Erenice. Foi a vez então de mirar em Franklin Martins, ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República.
Martins, ex-guerrilheiro que ajudou a sequestrar, durante a ditadura, o embaixador dos Estados Unidos Charles Elbrick, também é ex-diretor da sucursal de Brasília do jornal O Globo e ex-comentarista da TV Globo. Desde que virou ministro, em 2007, passou a encarnar o papel de algoz na visão dos grandes grupos empresariais do setor de comunicação. Aos olhos da mídia hegemônica, o jornalista cometeu ao menos quatro pecados mortais: viabilizou a criação da TV Brasil; estimulou a convocação da 1ª Conferência Nacional de Comunicação Social (Confecom); democratizou a distribuição de verbas publicitárias do governo; e, o mais grave de todos, ousou criar, em julho passado, uma comissão interministerial para estabelecer novo marco regulatório para as concessões públicas de telecomunicação e radiodifusão no Brasil. O relatório final sobre o assunto ficará pronto em novembro.
O ministro logo descobriu que ninguém mete a mão impunemente em um vespeiro desse tamanho. Na terça 21, o jornal O Estado de S. Paulo destacou, na primeira página, que um filho de Franklin Martins, o também jornalista Carlos Martins, trabalhava em uma empresa, a Tecnec/Rede TV, contratada pela Empresa Brasil de Comunicação – apresentada como “a TV do Lula” – por 6,2 milhões de reais, em dezembro de 2009. O fato de ter sido uma escolha por licitação, pelo critério de menor preço, não fez nenhuma diferença. No outro dia, a mídia de sempre seguiu a tocar o tambor em cima do novo “escândalo”. Antes, a NBr, tevê estatal ligada à EBC, havia sido “acusada” de filmar a presença de Lula nos comícios de Dilma. Ou seja, tentou-se criminalizar uma atribuição funcional da emissora, a de fazer qualquer registro histórico do presidente da República, sem a obrigação de divulgá-lo.
Assim, também para atingir o governo, há duas semanas um homem ainda não identificado se dirigiu à Procuradoria de Defesa do Cidadão, do Ministério Público Federal no Distrito Federal, para fazer uma “denúncia”: a Secom destinaria “vultosas” quantias em dinheiro, em forma de publicidade, para a revista CartaCapital para apoiar Dilma Rousseff.
Em tempo recorde a “denúncia” foi repassada à Procuradoria Regional Eleitoral da República, em Brasília, e em seguida mandada para as mãos de Sandra Cureau, vice-procuradora-geral eleitoral, por se tratar de tema referente à eleição presidencial.
Doutora Cureau (pronuncia-se “quirrô”, como ela faz questão de frisar) é uma senhora de aparência cândida, de olhos pequenos e azulados, emoldurados por finíssimas sobrancelhas, sempre muito arqueadas. Foi colega de classe, no Rio Grande do Sul, do ministro da Defesa, Nelson Jobim, e da ministra Ellen Gracie, do Supremo Tribunal Federal. Desde que assumiu o cargo, tem sido particularmente rígida quando o assunto é eleição presidencial. Partiu dela a decisão de multar o presidente Lula em ao menos quatro oportunidades por “campanha antecipada” a favor de Dilma. Em nome dos fatos, diga-se que as multas têm mais a ver com a rígida legislação eleitoral brasileira do que com recônditas intenções da procuradora.
Mas também em nome dos fatos é preciso dizer que Sandra Cureau, feita heroína na mídia, já usou dois pesos e duas medidas em casos semelhantes. A procuradora, em atitude pouco educada, chegou a recomendar a Lula que fechasse “a boca”, sob o risco de promover a cassação de registro da candidatura de Dilma Rousseff. Mas, quando o governador de São Paulo, Alberto Goldman (PPS), elogiou Serra, então pré-candidato tucano, o tratamento foi mais afável. “Não pode (Goldman), falando oficialmente como governador, dizer as coisas boas que Serra fez. Ele está indicando à população que Serra é a pessoa ideal para governar o País.”
Na sexta 17, quatro dias depois de CartaCapital denunciar a quebra de sigilo promovida pela empresa de Verônica Serra em 2001, um ofício assinado por Sandra Cureau chegou à redação da revista, em São Paulo. O ofício requisitava, num prazo de cinco dias, cópias de todos os contratos publicitários assinados com o governo federal entre 2009 e 2010. No documento não consta qualquer menção aos motivos pelos quais foram solicitadas as informações, ou a identidade do solicitante. De acordo com a assessoria de imprensa da procuradora, o cidadão que fez a denúncia em Brasília pediu para ter o nome mantido em sigilo, e assim foi feito.
A assessoria também informou que ofícios semelhantes haviam sido enviados, na mesma data, à Casa Civil da Presidência da República e ao Tribunal de Contas da União. Estranhamente, os serviços postais, tão eficientes em entregar o ofício de requerimento de informações à sede da CartaCapital, em São Paulo, não conseguiram, até o momento do fechamento desta edição, levar o mesmíssimo documento a endereços localizados em Brasília, a poucos quilômetros da Procuradoria-Geral da República. Nem a Casa Civil nem o TCU receberam qualquer ofício.
É interessante constatar que jamais houve a disposição da vice-procuradora-geral eleitoral de investigar casos fartamente documentados de utilização de recursos públicos para financiar veículos de comunicação claramente alinhados com a candidatura de Serra. Dados da Secretaria de Fazenda do Estado de São Paulo, do qual Serra foi governador até dois meses atrás, revelam que, entre 2007 e agosto de 2010, o governo tucano gastou 771 milhões de reais em publicidade, dos quais 155 milhões de reais foram direcionados apenas para revistas e jornais. Isso sem incluir os gastos feitos pelas estatais paulistas, como a Sabesp, companhia de esgoto e água de São Paulo, acusada de fazer propaganda irregular em estados tão diversos como Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Goiás, Distrito Federal, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Bahia, Ceará, Pernambuco, Alagoas, Maranhão, Pará e Acre.
Levantamento feito pelo blog NaMariaNews, especializado em vasculhar as relações entre a Secretaria de Educação de São Paulo com a mídia paulistana, a partir de pesquisa dos editais publicados no Diário Oficial, oferece à doutora Cureau muito mais do que uma simples denúncia anônima. O blog descobriu uma intensa relação da gestão de Serra com o Grupo Abril, fonte interminável de material usado pelo tucano em programas veiculados na tevê no horário gratuito eleitoral. Entre 2007 e 2009, somente com as aquisições de quatro publicações ditas “pedagógicas” (Nova Escola, Recreio, Guia do Estudante e Veja) o governo paulista pagou ao Grupo Civita 34,7 milhões de reais (quadro abaixo).
O Ministério Público Estadual acolheu representação do deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP) e abriu um inquérito civil para apurar irregularidades, especificamente, em um desses contratos, firmado entre o governo paulista e a Editora Abril na compra de 220 mil assinaturas da Nova Escola. Apenas com essa compra, equivalente a quase 25% da tiragem total da revista em questão, a Editora Abril recebeu 3,7 milhões de reais dos cofres públicos de São Paulo. Ato contínuo, Serra também apresentou proposta curricular que obriga a inclusão, no ensino médio, de aulas baseadas no tal Guia do Estudante, também da Abril.
O blog NaMariaNews analisou ainda outros contratos entre o governo Serra e a mídia paulistana. No DO de 12 de maio de 2009, por exemplo, revela-se que o tucano comprou, por 2,7 milhões de reais, 5.449 assinaturas da Folha de S.Paulo. No DO de 15 de maio do mesmo ano, está registrado outro contrato de compra de também 5.449 assinaturas do jornal O Estado de S. Paulo, por 2,6 milhões de reais. Em 21 de maio, foi a vez das Organizações Globo serem beneficiadas pela generosidade tucana: por 1,1 milhão de reais, o governo paulista adquiriu 5.449 assinaturas da semanal Época.
E o que dizer do maior escândalo de corrupção dos últimos tempos, o chamado “mensalão do DEM”, que levou à cassação do governador José Roberto Arruda no Distrito Federal? Antes de estourarem as denúncias de corrupção, gravadas em vídeo, Arruda foi apresentado pela Veja como um exemplo de administrador eficiente e honesto. Coincidência ou não, o governo do DF havia assinado um contrato de 442,4 mil reais para a aquisição de assinaturas da revista em 15 de junho do mesmo ano. A entrevista saiu logo depois.
Na mesma data, Arruda usou expediente semelhante para garantir a compra, por 2,9 milhões de reais, de 7.562 assinaturas diárias do Correio Braziliense, o maior jornal da capital federal, a serem distribuídas, ao longo de 2009, a professores e alunos de 199 escolas do Distrito Federal. O contrato com o Correio, firmado com o então secretário de Educação do DF José Valente uma das estrelas dos vídeos de propinas gravados pelo delator Durval Barbosa, do chamado “mensalão do DEM, previa como fonte de pagamento o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, o Fundeb. Ou seja, de recurso destinado, originalmente, ao financiamento de educação básica, aí incluídos creche, pré-escola, ensino fundamental e ensino médio, além de educação de jovens e adultos.
O ex-governador do DEM também tratou de agraciar a Editora Globo com um contrato de 4,9 milhões de reais, embora não tenha sido para distribuição de revistas e jornais. Firmado com a Secretaria de Educação em 20 de março de 2009, tratava da aquisição de 239,2 mil livros “com o fito de compor o acervo bibliográfico” das 620 escolas públicas do Distrito Federal. A fonte pagadora era o salário-educação, gerido pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), do governo federal – aliás, onde também está hospedado o Fundeb.